O prédio do Alto-Maé

Esta foto foi tirada pelo meu pai por volta de 1960. Penso que esta era a vista da Pinheiro Chagas, ao Alto-Maé, junto do cinema Infante. A imagem foi registada do terraço de um prédio cujo frente dava para o Jardim 28 de Maio. O prédio da Somac, uma empresa de peças de automóvel. Se não era Somac, seria qualquer outro nome muito parecido. Era um prédio relativamente bem frequentado pela classe média de diversas raças. Não me lembro se havia negros, mas é muito provável que existissem mulatos. Todas as flats eram alugadas, e eu morei no sétimo andar, a certa altura. No 6º, morava o juiz Muge, pai das irmãs Muge; uma delas a Amélia Muge, compositora e intérprete que vamos escutando. Perdia-me a espreitar as irmãs Muge namorando nas escadas. Não sei se elas alguma vez perceberam, mas foi a primeira vez que vi alguém namorar e dar um beijo.
Há nos Cadernos uma personagem deste prédio. É o preto Manjacaze, criado do prédio Lobato, que esvaziava os caixotes do lixo dos inquilinos. Lembro-me muitas vezes do Manjacaze, de quem o meu pai gostava muito, porque, dizia, era um preto bom. Não sei se era um preto bom. À distância tenho muita dificuldade em distinguir bondade e obediência. Seja como for, eu gostava do Manjacaze, que ia comigo no elevador e tinha um sorriso bonito. É provável que ainda esteja vivo. Deveria ser da idade dos meus pais ou pouco mais velho. Não se chamava Manjacaze. Optei por lhe dar este nome no livro porque era um homem alto e magro, e de alguma forma evocava em mim o famoso gigante moçambicano: o gigante Manjacaze.

Nota - Ocorreu-me agora: a foto da menina loura com cão, na capa do livro, também foi tirada pelo meu pai nesse tal jardim 28 de Maio.

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