Caminhando sobre o arame, a muitos metros de altura

O telefone fixo tocou. Raramente toca.

- Estou?!
- Olá, menina Isabela.
- Sr. Simões, então, não apareceu ontem no Porto?!
- Ora, desculpe lá, esqueci-me de a avisar que vinha a Casablanca a convite de uma associação de poetisas da vanguarda islâmica. Daquelas que não andam todas cobertas nem obedecem aos maridos - e que eles têm de tratar como pedras preciosas que de facto são, porque as mulheres são deliciosas, são todas deliciosas.
- Que romântico! Fico contente por saber isso. E matou dois coelhos: fugiu a este clima inenarrável.
- Olhe, tenho para aqui estado na praia com a presidente da associação.
- Mas, diga, Sr. Simões... É alguma entrevista?!
- Nã, nã, nã, nada disso. Oh, Isabela, estive a ler o seu blogue no hotel e achei que tinha de lhe chamar a atenção para certas coisas que a menina escreve.
- Que coisas?
- Ouça... a menina tem consciência de que o seu blogue é lido por gente grada...
- Gente grada?! O que quer dizer como isso?
- Jornalistas, políticos, médicos, professores universitários, deputados, juízes, outros escritores...
- Não faço a menor ideia, Sr. Simões. O Sócrates lê o meu blogue? Por amor de Deus, dê-me notícias mais animadoras!
- O seu blogue também é lido pelos seus familiares, colegas, alunos, pais de alunos, vizinhos, etc., sabe isso?
- Teoricamente pode ser lido por toda essa gente, mas não quer dizer que seja. Podem ir lá uma vez ou outra, mas não estou a ver os meus vizinhos ou alunos...
- Isabela, o que eu lhe queria perguntar é como é que que pensa conseguir créditos de escritora depois de revelar publicamente a sua intimidade?
- A minha intimidade?!
- Sim, como é que sai à rua e vai trabalhar depois de escrever textos nos quais revela os seus problemas com a gordura e confessa que se abraça a chorar às cadelas? A Isabela pensa que os outros estão interessados em saber quando lhe aparece o período?
- O período não tem nada de mal. O período enquanto ideia literária, tal como a cona, é bastante poético.
- Oh, filha, a menina não é poetisa, graças a Deus! Esses seus textos sobre a mulher-a-dias, sobre si, sobre a sua mãe a ver telenovelas...
- Não são sobre mim!
- Sobre os seus óculos novos...
- Não são os meus!
- As dores nos ossos, a sua eterna inquietação, a casa da sua avó...
- Nãããoo sou eu, Sr. Simões.
- Não é você... A menina escreve-se ali toda, pela frente e pelo avesso, a sua vidinha toda escarrapachada... Os textos sobre os abortos...
- Abortos de uma personagem.
- Desculpe lá, menina, não me tome por parvo. Eu já lhe disse que tem de acabar com esse tipo de escrita confessional e passar à ficção, se tem a ambição de fazer carreira. Se não...
- Sr. Simões, acabei de lhe dizer que é ficção. Não sei o que quer que lhe diga mais.
(silêncio)
- Essa mulher pública, demasiado carnal e humana, que ocupa meu blogue, que se expõe à maldade do mundo, ou à sua bondade, sem medo e sem vergonha, não sou eu.
- Não é você!
- Não, acredite, não sou eu. É uma personagem cuja vida, por acaso, coincide imenso com a minha, mas, como disse, é uma personagem. Não julque que não a admiro, que não gostaria de ser como ela. É uma mulher fascinante, mas infelizmente não sou eu!
(silêncio)
- Está bem, somos ambas gordinhas, temos cadelas, mãe, abortámos, etc., mas trata-se de um acaso, e não vou destruí-la nem negá-la ou escondê-la, em nome de uma eventual confusão. É a minha personagem de eleição. Adoro aquela mulher, Sr. Simões!
(silêncio)
- Pense como é que a mulher frágil e doce, mas também consciente e coerente, que sabe que sou, se arriscaria a uma tão grande exposição?! Acha que me aguentaria? Que conseguiria lidar levianamente com a opinião dos outros e encarar os colegas do trabalho, como bem disse?
- Sabe o que sinto, Isabela?! Sinto que você é capaz de tudo. Que se presta a tudo. Que gosta de caminhar em cima do arame entre dois arranha-céus de Nova Iorque.
- Ah, ah, ah. Sr. Simões... O que lhe hei-de dizer?! É bonita, essa imagem. E gostaria de ter essa visão do mundo, lá do alto, é verdade, mas só a minha personagem - essa mulher que quer que eu cale - conseguiria realmente, caminhar sobre o arame. Só ela arriscaria tanto, para me vir contar as sensações, logo a seguir. E eu, garanto, registaria tudo na cabeça, com imensa atenção, para me lembrar no momento da escrita. Tudo o que tenho escrito, ultimamente, é ficcional, acredite! Aliás, a seguir ao livro prometi-lhe que me ia dedicar à ficção. Excepto a cena da Roménia. E só tenho uma palavra.
- Ficção, diz você?!
- Exactamente, ficção pura.
- Bem, Isabela, a gente fala melhor lá para a semana - estão a chamar-me para uma massagem das que fazem cá em Marrocos. Sabe, não sabe?! Não estou convencido, hein?!
- Está bem, Sr. Simões, vá em paz que falaremos quando se sentir mais relaxado.

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