Ainda falta muito?

O Filho do Homem, René Magritte, 1964


Veio hoje até perto da minha casa. Parou a uns 40 metros e quedou-se perscrutando o edíficio. Qual seria o meu andar?! Eu estaria dentro de um daqueles apartamentos, com o meu marido, a quem me habituei, e as minhas filhas queridas, mas qual?. Eu, os meus olhos, o meu cheiro, o éter de mim, sobretudo de nós, que ainda paira sobre o mundo, e continuará nele após a nossa morte, amalgamado na enorme esfera de amor gasoso, e perda e dor que todos os dias cresce até um dia explodir e chover sobre o mundo estrelas de fogo. Um massa invisível que não tem para onde ir.

Vinha com o irmão mais velho, e disse-lhe, vês estes prédios, são novos, boa construção, deve custar bom dinheiro um apartamento destes, com lareira e garagem. O irmão não sabia; lareira e garagem, boa construção, sim senhor. Estava justificado o interesse pelo prédio onde moro. E continuou olhando como se as paredes fossem de vidro. Foi depois do almoço. Eu ainda estava à mesa com a Raquel, e explicava-lhe que não, que não podia ir ao cinema sozinha com amigos incertos, apesar dos 12 anos, porque eu não fui ao cinema sozinha, com essa idade, e é o que está bem, essa educação antiga, que colocava o certo e o errado em prateleiras sem talvez, sem dúvidas; e porque o mundo está cheio de mal de que pretendo afastá-la enquanto puder.
Tinha vestida a minha túnica negra e branca de trazer por casa, um saco que não me favorece, e o Carlos estava a preparar-se para lavar a louça. A Raquel amuou e foi para dentro ruminando a minha morte. Lá dentro, a irmã salgou a ferida, bem feita, tens a mania que podes fazer tudo. E eu dirigi-me à cozinha, em silêncio, sabendo que ele estava lá fora, e pensando que ter filhos é pior que suportar uma doença crónica, porque não há remédio que nos alivie o incómodo, e nem sequer desejamos livrar-nos dele. Ter filhos, o que nunca se sabe o que será antes de os ter na mão, de dependerem da nossa protecção, do nosso sacrifício que nunca admitirão. Tive filhos, porquê, pergunto-me? Eu e ele nunca falámos em filhos e tremíamos com os descuidos. Tive filhos porque toda a gente tem? Sim, por isso, claro, claro. Porque o esperavam de mim. Porque era a ordem natural das coisas, embora temesse a ordem natural das coisas! Mas a mãe do Carlos, nos anos seguintes ao casamento, perguntava-nos, todos os fins-de-semana, então, quando me dão um netinho? Toda a gente o esperava. E a certa altura decidimos que já gozáramos o suficiente, que poderíamos, então, iniciar o calvário.

Foi esse o cenário familiar que pôde observar através da sua visão raio-x. Eu, a minha família, o rame-rame diário, esquecida dele, do que construímos e destruímos juntos, como se nunca nos tivessemos conhecido. Na verdade, não o suporto. Viro a cara se o encontrar na rua. Finjo que não o vejo. Desprezo-o. Preferia nunca ter tomado nota da sua existência. Essa carraça mal feita que não me larga a pele, que me escreve cartas anónimas, perguntando se ainda tem de esperar muito. Quanto anos faltam até cumprires cabalmente, até sentires que cumpriste cabalmente as tuas tarefas de mãe e esposa? Não percebe o essencial: casei com o Carlos para o esquecer; é verdade que o amava, mas como pode esperar que após 16 anos de conjugalidade não me tenha afeiçoado ao homem que me ofereceu a oportunidade de ser uma mulher normal, integrada, uma mulher casada, igual às outras? Não interessa quanta rebeldia enegrece o nosso coração, desde que flua calada. Desde que os vizinhos de baixo e de cima não detetem nada de especial no nosso comportamento. Desde que passemos todos os anos férias no Algarve e façamos grelhados na varanda. Temos de ser iguais, fazer igual. É o segredo para uma existência pacífica, conquistando amigos. Ninguém tem nada que dizer de mim. Nem os meus pais nem os meus sogros. Tenho sido tudo o que se espera de uma esposa, de uma mãe e de uma mulher de trabalho.

O Carlos pode não ser bonito nem brilhante nem rico, mas é o pai dos meus filhos, e aprendeu a digerir as minhas neuras, sabendo que não o amava quando casámos. Espera aquele lá fora que um dia eu largue o meu marido para acabar nos seus braços? Oh, deixa-me rir. Quem é ele, agora? Já não me lembro dos seus braços. Um estranho. Não o conheço. Já não sou dele. O que passou, passou. Teima em não perceber que não lhe pertenço, que em nada me move, que sou apenas a sua obsessão. Porque não vai ele, ao domingo, com o irmão, observar a arquitetura do Parque das Nações?! Que me largue! Pensará ele, por um segundo, que deixarei o Carlos na velhice para me juntar a ele? O Carlos que me tem apoiado todos estes anos? Que me tem sido fiel como as minhas próprias mãos? Que patetice de quem não se cura porque não quer curar-se, avançar, viver. Eu fiz a minha vida. Faça ele a sua. E sem mim, caramba. Há por aí tanta mulher.
Olhou para a minha casa sem saber que era nesta que eu estava. Olhou para mim, que afastada da janela o observava, especado ao lado do irmão gordinho, de mãos nas calças, olhando para o alto como se esperasse ver-me flutuar toda envolta em chiffon azul-celeste, com asas brancas. Como se eu fosse a única coisa no mundo que não pôde ter e ainda deseja. Como se eu tivesse alguma importância. Como não se importando que eu valha nada, que não passe de uma afeita ao sistema que nos impomos, e uma traidora aos ideais que defendemos no tempo em que nos amámos. Olhou para mim sem me poder ver. Eu estava lá. Havia o reflexo no vidro das janelas e os seus olhos podiam ver apenas o que queria ver. Os seus olhos que passaram por mim, que pousaram em mim. Pobre homem.

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