Do ruído e do silêncio

Estou apenas a dizer a verdade. Sem a verdade, por mais dura que seja, não pode haver cicatrização. É tudo.
Coetzee, J. M., Verão


Não sou escritora de livros sobre o colonialismo e os retornados. Não sou memorialista nem diarista, esses subgéneros para os quais se remete aquilo que à inteligência interessa chamar literatura de menor importância. Não quero ser coisa alguma. Sei que escrevo. Sei que, eventualmente, esse material poderá transformar-se em livro. Não conheço nenhum compartimento no qual me apeteça encaixar o que produzo. Não me interessa ser romancista nem contista nem ganhar prémios nem qualquer outra menção atribuidora de estatuto pessoal, artístico e literário. Não estou aqui para entrar na concorrência. Quero continuar a ser a dona Isabela, aquela senhora gordinha das cadelinhas, que vai ao café com chinelos de enfiar no dedo e t-shirt coçada. Quero falar e escrever livremente, sem medo, sem ambições, apenas porque me sinto bem, e, por outro lado, preciso de o fazer.
Também não me preocupa que o meu próximo livro não venha a ter a visibilidade do Caderno - tem sido uma pergunta recorrente, ultimamente, bem como, qual será o próximo, se já está pronto a editar, etc. Sou nova neste meio, não tenho amigos nem nomes de família nem uma máquina de marquetingue atrás das costas. Fiz-me sozinha no Mundo Perfeito, mas percebo que o orgulho operário tem o seu preço.
Nos últimos meses, tenho escrito e falado muito sobre sobre África, porque me têm solicitado para esse fim. A publicação do Caderno proporcionou-o, naturalmente. Toda esta onda me tem ajudado a posicionar-me identitariamente. Tornou-se agora mais claro, para mim, o lugar onde pertenço, e aquilo que afinal sou. As pessoas perguntam-me sobre tudo, e vejo-me levada a refletir questões que nunca me ocorreram.
Recentemente, revi uma entrevista gravada na qual Mia Couto e José Eduardo Agualusa falavam dos seus países sob diversos ângulos, e enquanto seus representantes culturais. Tenho de me pronunciar, desculpem, mas tem mesmo de ser. Mia e Agualusa não terão culpa, mas custa-me esta coisa dos representantes das culturas de Angola e Moçambique continuarem a ser brancos. Não há negros, mulatos, indianos misturados ou puros, outra raça qualquer a escrever nestes países? Estranho.
A certa altura, a apresentadora questiona os entrevistados sobre a forma como os seus países têm vindo a curar as feridas da colonização e descolonização. Agualusa lá se explicou sobre Angola, a meu ver, com sentido. Mia Couto, com a habitual lentidão discursiva e aparente desinteresse, defendeu a ideia de que em Moçambique não há ruído sobre o assunto. Segundo Mia Couto, os moçambicanos escolheram curar as suas feridas em silêncio. Curar feridas em silêncio!, ora aí está uma novidade sobre a qual a psicologia deverá debruçar-se.
O silêncio silencia, não cura. Acredito que Mia, pessoalmente, tenha escolhido o silêncio, mas tenho razões para duvidar que os moçambicanos escolhessem conscientemente coisa alguma, para além da sobrevivência diária, que é o que tem lógica. O silêncio dá jeito é aqueles que, se falassem, teriam demasiado a contar.

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