O pão, o néctar, o fruto de Deus

Um dia escreverei uma história alegre como um folheto dos Testemunhas de Jeová. Decorrerá num dia vulgar de sol ameno, junto a um lago atravessado por peixes vermelhos de cauda recortada, longa, bailando sob a água translúcida, sobrevoado por aves azuis e douradas, e rodeado de gente de todas as raças e idades, sorrindo deitada pela relva, conversando, a par com animais domésticos e selvagens, muitos, sem quaisquer instintos agressivos, festejando-se mutuamente, brincando entre si e com as crianças. As flores surgirão aos cachos em qualquer árvore, arbusto e muro, e o odor das rosas e do jasmim impregnará a atmosfera.
Um dia escreverei esta história, mas não agora. O meu corpo está inchado de narrativas tristes, buscando a clareza da leitura, para que eu sonhe alcançar o fundo, muito fundo, do arquivo onde repousam as histórias felizes, de um sem tempo cálido, quando a inocência, a bondade e a justiça reinavam sobre o meu mundo, sem poréns. Moram num sítio onde hei-de chegar. Um dia resgatarei impressões antiquíssimas, anotadas a lápis, com caligrafia imprecisa, e esse será o dia do maravilhamento. Mas agora, é cedo.
A primeira vez que provei um marmelo cuspi a sua carne. Foi quando parti das Caldas em direção à terra da minha mãe.
A minha avó paterna inventara ou comprara histórias que manchavam a minha honra adolescente, e ufanamente as transmitiu ao meu pai. Na sua versão, eu portava-me mal. Fumava muito. Andava com rapazes na escola. Dava-me com uma vizinha dez mais velha, e mal falada, porque tinha feito coisas com um namorado que depois a largara, e não podia ser boa influência.
À minha avó paterna não lhe interessavam escolas nem letras. Era fundamental eu arranjar trabalho: aprender para costureira ou cabeleireira, empregar-me numa loja, render dinheiro em lugar de dar despesa. Arranjar namorado, manter-me virgem até ao casamento, obedecer ao meu marido, ter um casalinho e seguir a vida normal das pessoas normais.
O meu pai não aceitou histórias. Que eu estava na Metrópole pelos estudos, e que ninguém me tirava da escola. Foi uma decisão justa, sobretudo por não existir uma vírgula de verdade no que a minha avó lhe contara. Eu era uma menina exemplar.
As intenções da minha avó concederam-me guia de marcha para outro paradeiro: a família da minha mãe. Quando saí das Caldas para ir viver para Alcobaça, cheguei no tempo dos marmelos. Era final de Agosto, princípio de Setembro, e eu tinha treze anos, quase catorze, e muita, muita fome.
A minha prima penteava-me os cabelos e exclamava, são louros verdadeiros, e tão longos e finos… e por momentos sentia-me quase uma princesa, embora não passasse de uma adolescente gorda, com acne a desfeiar-me, eu bem sabia. Uma coisa sem jeito que agradava a velhos sebosos, que se babavam por meninas nutridas. Eu não passava de um trambolho,de um móvel sem lugar nem valor. A minha prima, pelo contrário, era a rapariga mais bela da aldeia; tinha 18 anos, casa, pais, amigos, a pele branca e macia, as faces rosadas, os cabelos castanhos clarinhos, sempre impecavelmente penteados, cortados pelos ombros, enrolados para dentro, e eu sonhava ser tão bonita como ela. Queria ser outra, menos alta e forte para a minha idade, sem as mamas crescendo, crescendo, e a anca, o rabo, as coxas que alargavam O meu corpo não tinha travão, e, para mais, nascia-me uma fome inexplicável, o que não ajudava.
Foi o primeiro Verão em que vi pêssegos nas árvores, e figos brancos e negros, uvas gordas nas videiras e marmelos nos arbustos, por todo o lado, separando propriedades. Os marmelos não tinham valor algum. Amarelos, orgânicos, olorosos, não podiam comer-se crus sem deixar a boca grossa. Caíam e apodreciam sem que os aproveitassem. Eram tão vulgares que perdiam o seu valor.

Eu e a minha prima, pelo final da tarde, íamos colhê-los pelas veredas, trazendo-os dentro de baldes de metal, para fazermos marmelada, com água e açúcar, noite dentro, enquanto ouvíamos músicas românticas nos discos pedidos, sentadas na mesa da cozinha, coberta com toalha de oleado, conversando sobre experiências de raparigas. Rapazes, vizinhas, quem gostava de quem, bailes, pinturas...
Descascávamos os marmelos e partíamo-los com dificuldade, ficando com as mãos negras. O fruto, descascado, oxidava se não fosse metido na panela e sujeito a fervura. Portanto, cozíamo-lo, rapidamente, e durante muito tempo, até se tornar numa papa mole, mudar para cor-de-tijolo e depois engrossar, abrindo bolhas lentas que espirravam contra as nossas mãos e pulsos e nos queimavam a pele bem fundo. A marmelada tinha um sabor outonal a fruta seca, muito pura. Extremamente doce, como se usava, sendo fresca e fria barrávamo-la no pão como manteiga granulosa, mas após repousar semanas, cortava-se às fatias, como o queijo, e comia-se devarinho, com ou sem pão, saboreando-se com os olhos fechados. Comia-se sem parar. Era bom demais. A minha tia dizia-me, pára de comer, rapariga, que assim só engordas. E eu parava, para logo recomeçar, às escondidas. A marmelada matava-me a fome e consolava-me. Podia nadar em marmelada. Dormir num colchão de marmelada. Enfiar-me num poço de marmelada, e dormir nele, até chegar um príncipe que me desenterrasse, me beijasse, me acordasse da fome insaciável.
Os marmelos eram como eu: tesouros por abrir. Estavam para ali, os pobres nascidos, ninguém os olhava, colhia, carregava. Davam trabalho a confecionar. Contudo, se escutassem a sua voz doce, se os abrissem ao meio, perceberiam ter no regaço o pão, o néctar, o fruto de Deus.

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