Pobre, suburbana, de nariz empinado

Roubei esta foto do perfil de algum dos meus amigos do Facebook, não me lembro qual, pelo que peço que me ajudem a identificá-la. Retrata pessoas que vivem na Margem Sul, que trabalham em Lisboa, que regressam a casa nos últimos cacilheiros, esgotadas, e que passarão pela vida sem que lhes tenhamos dado uma existência, enquanto formos todos muito bons, muito letrados, muito diferentes deles.



Ontem, na conversa sobre "Mulheres e Sexualidade" que teve lugar na Ler Devagar, organizada pelo CEMRI, tive oportunidade de tornar público um esclarecimento sobre o enquadramento literário que deve ser dado ao Caderno de Memórias Coloniais, e do qual não abdico a partir deste momento.
Na verdade, trata-se de uma autobiografia romanceada, ou de um romance de inspiração autobiográfica, expressões usadas no paraíso no qual vivemos para designar obras que partem da experiência do eu. Passo a explicar: fartei-me de recriar cenários, personagens, mudei nomes, alterei relações de parentesco ou outras, na verdade o meu pai não andava sempre de camisa branca, o diabo a sete. Peguei na minha memória e recriei-a literariamente sem trair os acontecimentos dos quais fui testemunha. Literariamente é aqui a palavra-chave. O Caderno de Memórias Coloniais é uma obra literária como o são O Amante, da Duras ou África Minha, da Karen Blixen. Não pretendo comparar-me com estas escritoras - sei manter-me no meu galho - mas ninguém se atreve a remeter para uma categoria de literatura à parte, de menor importância, a obra de cariz autobiográfico da Duras, da Blixen, nem a FNAC lhes coloca os livros na prateleira das obras de história sobre colonialismo, como acontece no meu caso. Portanto, não sendo o meu caso diferente, pretendo tratamento igual. 
Um dos participantes na conversa de ontem alegou que talvez a autobiografia não fosse tão mal considerada, em Portugal - subgénero dos subgéneros, afirmei eu - argumentando com Bilhete de Identidade, da Maria Filomena Mónica. Respondi não ter a origem social nem a entourage da Maria Filomena Mónica. Vim do nada, fiz-me sozinha. A resposta satisfez, mas a questão voltou a ser aflorada mais tarde, já a nível particular: parece não ser boa estratégia de marqueting assumir-me como suburbana, oriunda do nada. Foi a segunda vez em menos de uma semana que mantive uma conversa na qual questionavam a minha insistência na origem social. Em Portugal é tramado uma pessoa não se dar ao luxo de parecer qualquer coisa. Em Portugal, considera-se coragem uma mulher afirmar "eu sou isto, eu vim daqui, eis-me sem florzinhas". Isto não é coragem, é autenticidade. É não suportar viver de aparências, de faz de conta. Se faço questão de deixar clara a minha origem social e vivência suburbana é porque as meninas como eu raramente têm a sorte de dar o salto.
Na escola, na semana da leitura, aconteceu-me ler uma frase atribuída a Dickens, que cito de cor e mal: "a pobreza é uma fortaleza com ponte elevadiça". A ideia seria a de que quem está na pobreza se encontra encerrado num lugar de onde nada sai e onde nada entra, existindo, porém, a possibilidade de se sair pela ponte levadiça, caso ela baixe, não se sabe quando nem como. Devo dizer, pela minha experiência de cidadã, professora e observadora, e todas me levam à escrita, que raras vezes vi a ponte levadiça descer para deixar alguém escapar à pobreza ou à classe na qual nasceu. Claro que há exceções, claro que há pessoas que conseguiram escapar à maldição, contudo, as questões de classe são hoje tão atuais como nos últimos dez mil anos, pelo que continuarei a lembrá-las exatamente como lembro que há gente que passa fome e animais que são maltratados.
Há ainda outro aspeto a considerar: lembrar a classe da qual provenho e nomear a minha condição suburbana é também honrar a força dos meus pais, que trabalharam em nome da minha educação, e dar visibilidade ao meio no qual vivo. O mundo não é a élite "intelectual" da Bica e do Bairro, que veio exatamente do mesmo lugar que eu. O mundo são pessoas como eu, que vieram da merda, que a comeram quando foi preciso, que vivem com o pão nosso de cada dia, com tostões contados a partir do dia 20 e que pedem emprestado para depois pagar. Ou não. Este é o mundo no qual chafurdo tentando manter a cabeça à tona.  Não me digam que são todos diferentes!            

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