Cabrão velho

Putchi era o cão da minha senhoria, em Alcácer do Sal, quando lá trabalhei numa sucursal da fábrica. O Putchi foi, sem qualquer hesitação, dos cães mais feios e mal cheirosos e pulguentos e carracentos e espertos que conheci em toda a minha vida.

Era um cão de caça, baixo, quase roçava o chão, de pêlo curto, branco sujo misturado com amarelo, cinzento, castanho, preto, óleo dos carros, bosta de ovelha. Tinha as orelhas rasgadas e cicatrizes no focinho. Quando se enrolava na cama que lhe arranjei, parecia uma esfregona velha que já ninguém se atreveria a usar.

Antes da minha chegada, o meu senhorio chegou a esquecer-se dele nos montes, recuperando-o uns dias depois. Deixava-o, sem querer, fechado na bagageira do automóvel, e ia trabalhar de autocarro. Algum tempo antes de eu chegar, o Putchi dormia no pátio, que no Inverno era gelado, acorrentado a uma casota de pedra por meio metro de corda, e comia restos do jantar dos donos. Segundo o meu senhorio, era um excelente cão de caça, o que não lhe granjeou melhor tratamento.

Quando cheguei àquela casa, o Putchi já tinha conseguido carta de alforria e passava a maior parte dos dias solto, vagueando por onde lhe apetecia. Essa seria a sua grande benesse. A liberdade.

A primeira vez que dormiu dentro de uma casa, e sobre superficie almofadada, foi no dia em que fui viver para o sotão da minha senhoria. Entrou-me lá dentro a abanar o rabo, com os olhos muito molhados, muito vivos, pretos, eu olhei para aquela bota velha com mau hálito, e apaixonei-me por ela. Enquanto lá estive o Putchi gozou vida de lorde. Só descia para vadiar. Raramente ia à caça. Nunca mais viu coleira nem trela e posso dizer, com alguma certeza, que foi feliz.

Tossia muito de noite. Acordava-me, e fazia-me levantar para lhe enfiar Nimedes goela abaixo, que era o que havia, e resultava. Era-me fiel como o meu próprio corpo. Nunca lhe dei banho, que ele não permitia essas práticas anti-naturais, mas esfregava-o com panos húmidos e ensaboados, para aliviar o cheiro e tirar a maior. Desparasitava-o, alimentava-o e falava com ele.

De manhã, acompanhava-me, muito alegre, até à fábrica, correndo atrás dos pardais que se atravessavam pelo nosso caminho, e depois ficava uns minutos ao portão, até seguir destino. Conhecia o meu horário, e voltava para casa quando eram horas do meu regresso.

O maior desgosto do Putchi era não ter autorização para dormir na minha cama. Ainda me lembro do cheiro dele. Cheirava a cebola podre perfumada com terra. Era um cheiro doce, ácido e velho. Com o tempo, e a insistência dele, cheguei a arranjar-lhe uma cama especial muito ao fundo do meu colchão, com um cobertor velho, e dizia-lhe, ficas aqui sossegadinho, não sais daí, e adormecia, e acordava sempre com a cabeça dele deitada na almofada ao lado da minha, e aquele hálito poderoso no meu nariz. Ria-me, o que é que eu havia de fazer, ria-me e voltava-lhe as costas, e insultava-o, chamando-lhe grande cabrão, e outros mimos.

Quando de lá saí levei-o muito atravessado no coração. O Putchi não era meu, era um cão emprestado. Hoje penso que devia tê-lo trazido, porque morreu atropelado, dois meses depois, na estrada dos Açougues, com as tripas expostas.

Fomos muito felizes os dois. Alguns dos momentos mais felizes vivi-os com cães. Alguns nem sequer eram meus.

Não podemos voltar atrás, mas podemos aprender com a memória do que não não é possível consertar.


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