Desgosto cru

Há muitos anos, nos tempos em que o Agualusa ainda não era um escritor luso-angolano, apenas colaborava no DNJovem, abordou-me para uma crítica pertinente.

Argumentava que o que eu escrevia sobre África era demasiado saudosista, que dava da realidade colonial uma ideia melosa, de uma boa vida. Que me referia aos retornados com certa compassividade, esquecendo-me do fundamental da questão: o massacre de Wiriamu. Sabia eu o que se tinha passado em Wiriamu?! Sabia vagamente, digamos. Claro que lhe disse que sabia muito bem.
A crítica do Agualusa tinha todo o sentido. Não o admiti. Fugi à questão o mais que pude. Que essa não era a minha intenção, a do saudosismo - e não era - e fugi. Acho que nunca mais voltámos a falar sobre este assunto e, de forma geral, sobre nenhum outro. Penso que o Agualusa nunca gostou muito de mim.

Em 1985 não posso dizer que a questão colonial estivesse arrumada na minha mente. O meu pai estava vivíssimo da silva, tratava por tu todos os pretos que encontrava pelas ruas de Lisboa, perguntando-lhes, ó pá, de onde é que tu vieste, e basicamente desejava que a Renamo destruísse, de preferência com bomba atómica, qualquer resquício da Frelimo.

Creio que n'O Mundo Perfeito cheguei a revelar que quando O Enigma da Caixa de Música, de Costa-Gavras, estreou em Portugal - filme que explora o dilema de uma filha, ao descobrir que o amado pai pertenceu activamente às SS - fui vê-lo segunda vez com o meu pai. Para ele, era a primeira. Queria prazenteiramente confrontá-lo com aquilo.

Estávamos os dois no cinema, lado a lado, amávamo-nos, tínhamos saído de casa num sábado à tarde, lanchado na pastelaria Suiça, rido, conversado, e agora eu estava ali a mostrar-lhe - desculpem, o filme estava ali a mostrar-lhe - como era o fim dos conjurados, estás a ver?, e este devia ser o teu fim, devias pagar e bem. Estás a ver, meu grande filho-da-puta?

Ser filha do meu pai foi o meu maior bem e contentamento e simultaneamente um desgosto cru, manchado de dor e vergonha. Como pôde existir tanta negação e tanta raiva pelos meandros do amor mais pungente que lhe dedicava? Como podia traí-lo tanto?! Foi com este misto de sentimentos que tive de aprender a viver, e a resolver-me e a posicionar-me na vida. Será esta ambivalência algo assim tão impossível de compreender?! Não faz ela parte de incontáveis episódios da história da humanidade e da literatura? Sou a única com telhados de vidro? Sinceramente, creio que não. Há muito quem por aí tenha sentimentos semelhantes.




O passado colonial está arrumado de forma muito transparente na minha memória ou não poderia escrever sobre nada disso. Talvez um certo meio politica e socialmente correcto preferisse que registasse tais memórias com mais paninhos quentes, explicações, justificações. Se calhar deveria excluir-me do processo e dizer, ah, isso foram os outros, eu cá não. Não é possível. O que tenho a dizer é totalmente sem paninhos quentes. Portanto, o que me ocorre sobre o passado colonial limita-se à narração ou descrição fria, e o mais isenta possível do que vivi. Na minha consciência não preciso de atenuantes. Na minha consciência, e estou farta de dizer isto, preocupa-me, apenas, proteger o amor pelo meu pai, e é isso que é difícil e me remete constantemente para o fio da navalha. Não tenho nenhuma outra forma de o fazer a não ser declarando que, apesar de tudo, o amava, o continuo a amar. Sou fracota nisto do amor.

De resto, o colonialismo... tudo muito bem arrumadinho. Tínhamos a melhor das vidas. Os negros safavam-se; mais porrada, menos porrada, lá lhes calhava, tal como a um cão do qual afinal até se gosta, um bocado de carne. O pessoal da Metrópole estava-se nas tintas para o destino dos pretos, as especificidades da vida colonial, o que o chateava era a mortandade na guerra, e não ter, também, os seus pretos tão fáceis, tão à mão; tinha-nos uma inveja de morte, e tratou-nos pior que febre suína quando cá chegámos a pedir batatinhas.

A maior parte dos retornados, velhos e da minha idade, continua hoje a odiar os pretos, e a financiar, sob a forma de doação, os movimentos de extrema-direita. Mas o que sempre foram da Metrópole odeiam a pele negra de igual forma, e mal se distinguem dos referidos doadores. Entretanto, o complacente Estado português alarga os limites da liberdade de expressão a um ponto tal que possibilita a proliferação de mensagens cujo conteúdo é ofensivo da dignidade humana, pela discriminação implícita.

Pela minha parte, e para memória futura, pretendo deixar claro o seguinte: participei ou, no mínimo, fui testemunha de actos colonialistas e racistas durante boa parte da minha vida. Tudo o que vivi foi traumatizante e impediu-me de me tornar um ser humano mais livre e mais aberto. Sou filha desse colonialismo, para o bem e para o mal, e os meus actos têm-no sempre como medida primeira. Foi a vida que tive. Foi assim que começou. Não posso voltar atrás. Não posso negá-la. No entanto, assiste-me o direito de a expor como um quadro da guerra, como uma Guernica, para que pelo menos não possa voltar a acontecer sem o meu aviso nem sem o meu exemplo.


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