Essa forma de existência tão anormal

A minha vizinha do lado é uma mulher jovem e muito bonita. O marido é um camião TIR com o tubo de escape muito carbonizado. Nunca saem juntos de casa. Nunca entram juntos.
Sei que são casados porque a minha sala dá para a cozinha deles, ambos passamos muito tempo nos respectivos espaços, e as paredes são finas demais. Há dias em que tenho dúvidas sobre se hei-de ver um dvd ou ficar a ouvir a troca de galhardetes do outro lado. Do outro lado há tensão emocional, há dimensão trágica, há ciúme, raiva, desprezo, humilhação, decepção; os intervenientes na acção desempenham os seus papéis com autenticidade e mestria, como se nunca tivessem feito mais nada na vida. Vê-se que não são amadores. Enquanto num filme é sempre incerto.
Quando os ouço penso que tive uma sorte enorme em escapar ao teatro da vida conjugal. Mas depois páro um pouco e sei que é mentira. Isso era o que eu gostava que fosse, para poder justificar, com argumentos imbatíveis, a minha condição de solteira, essa forma de existência tão anormal, como dizia no outro dia uma tia minha.
Porque é evidente que outros casais têm tudo. Os meus vizinhos é que tiveram azar.

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