Falta-me o pai das cadelas

Sentadinha na esplanada do costume a ler o Público e o Expresso acabados de sair do forno, com as cadelas à solta debaixo da mesa, e um café sobre o respectivo tampo.
Aparece o filho da Ermelinda, empregada do café Machado, onde se fazem os melhores croissantes do bairro. Seis anos de rapaz.
- Estas cadelas são tuas?
- São.
- Elas comem flores? - enquanto esmagava uma entre as mãos.
- Não, só gostam de as cheirar.
- Comem sementes?
Fiz uma pausa, tentando lembrar-me:
- Não, não comem. Só se meteres a semente dentro de um bocado de carne.
- Tenho aqui uma, estás a ver? - e mostra-me um grão de milho de pipoca.
- Sabem jogar futebol?
- Não, nunca as ensinei.
- Devias ensiná-las.
- Como? Eu também não sei.
- Pedias ao pai delas.
- Qual pai? O meu marido?
- Sim.
- Eu não tenho marido.
- Não tens marido?! - o miúdo esboça um grande sorriso incrédulo. Custa-lhe a acreditar.
- Como é que consegues? Ainda bem que são cadelas, se fossem cães era mais difícil para ti.
Fiquei a rir-me.
Para as crianças deve ser muito confuso adequar à lógica do seu mundo, ainda tão puro, tão possível, tão selvagem, a ordem das coisas tal como lhes é transmitida em casa e na escola e nos restantes círculos sociais. Já não nos lembramos, mas para nós, as lógicas da cultura que agora defendemos com unhas e dentes, também devem ter sido um parto difícil.

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