Gigantesca figura

O meu pai morreu em Maio, há oito anos, e eu deixei passar o dia. Não me lembrei mesmo.
Não vou ao cemitério há um bom par de anos. Imagino que os seus ossos estejam muito sossegadinhos, numa gaveta, a ganhar humidade ao lado dos da mãe. Dentro de um gavetão de cemitério deve haver muita humidade.

Até parece que afinal esqueci o homem da minha vida. Que já era.

No outro dia sonhei que o meu pai tinha morrido num lar. A proprietária procurava contactar-me, bem como à minha mãe, para nos avisar da sua morte, mas não nos conseguia localizar. Tinhamo-lo abandonado nessa casa e nunca mais o fôramos visitar. Não tínhamos deixado morada nem números de telefone. Eu estava aflita; queria explicar que não era isso, mas também não sei dizer o que era.

É provável que tenha de carregar comigo a culpa, eventualmente justificada, de ter abandonado o meu pai. Tanto no plano simbólico, como no real, ambos travámos, ao longo do tempo, uma inexplicável luta de abandonos sucessivos e de reencontros de amor brutal.
Quando escrevo sobre o meu pai sinto quase sempre que o abandono mais uma vez, e talvez não o mereça. Talvez. Nunca tenho a certeza.

O meu pai era um homem sorridente, generoso, sensível. O meu pai era irascível, medonho, impulsivo.

Ontem, enquanto via um episódio de Dr. House, aconteceu-me chorar. O médico negro deixou morrer uma doente, e havia ali uma certa tensão. A combinação choro e médico negro transportou-me para a memória do meu pai. Por vários motivos: o meu pai também chorava. Chorávamos nas mesmas alturas dos filmes: era um bocado ridículo e até nos ríamos disso. Se estivesse a ver aquele filme comigo, o meu pai teria ficado comovido com o médico negro. Por ser médico e negro. Por ter conseguido ultrapassar as barreiras da raça (o episódio também abordava a temática). Mas se estivesse a ver o episódio comigo, o meu pai teria comentado, mais para si próprio do que para mim, embora até parecesse que estaria a convencer-me - e sei que o teria dito, sem falhar - "os negros também podem chegar a médicos. Também são espertos, em querendo. Também são capazes". E di-lo-ia com uma convicção enorme. Isso dos negros também serem capazes de ser médicos. E às vezes dos bons, melhores que os brancos.

Concluindo: posso perfeitamente esquecer-me da data de aniversário e morte do meu pai, porque não o esqueço no resto das datas, ou melhor, todos os dias. Está ali aquela gigantesca figura zangada, humana e dorida, como um antigo amor que nunca conseguimos ultrapassar.


Dr. House e Companhia

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