Pacheco Pereira e o retrocesso civilizacional

Pacheco Pereira insurgiu-se ontem, no Público, contra a Imprensa que tresanda a histórias de vida cheias de pathos, porque isso constitui um retrocesso civilizacional. Referia-se, em concreto, ao caso da menina russa, filha de mãe alcoólica, que o tribunal entregou à dita, entre outros casos, como o de Leonor Cipriano. Notícias deste tipo causam horrores a Pacheco Pereira. Aliás, tudo o que seja vagamente pessoal, eu diria, popular, lhe causa horrores. Pacheco, tendo vivido no século XIX, nunca teria lido Camilo.
Lembrei-me do prédio da minha mãe.
No prédio da minha mãe há 10 inquilinos mais ou menos velhotes. Todos se conhecem uns aos outros e entreajudam. Todos contam uma parte da vida. Não tudo, só um bocadinho. Eu, que não moro lá, reparo que os vizinhos da mãe sabem muito mais sobre a minha vida do que eu poderia imaginar, e não é que me incomode, mas a minha mãe deve descair-se um bocado. Quando a minha mãe não me atende o telefone, o que me preocupa sobremaneira, telefono imediatamente ao vizinho de baixo, ou ao do lado, para lá ir bater à porta e ver o que se passa. Que estava a pendurar roupa no arame, com a cabeça fora da janela, ou que deixou o telefone mal pousado na base.
A Dona Jesus, a quem o filho único, que era violoncelista, morreu com sida, em Paris, há duas décadas, costuma pedir-me para lhe interpretar as cartas que vêm do banco com o saldo das contas à ordem e a prazo, e pede-me para lhe ver se o marido andou a levantar dinheiro para dar "às putas". Lá lhe explico tudo muito bem. Em que dias levantou ele dinheiro para as putas, e quanto, e o que restou, e que juros venceram as contas a prazo, etc.
Aos almoços de domingo também tenho direito ao relatório materno das notícias da semana. E vou dando a minha opinião. Como nos outros andares, outros vizinhos devem dar a sua opinião sobre a minha vida e a da minha mãe. Por exemplo, uma das opiniões correntes, lá no prédio, é que sendo a minha mãe velhinha, e eu filha única, deveriam unir-se as casas, que até era mais barato e tudo. Acredito.
Com isto tudo, contei-vos uma pequena história de vida.
Vamos a outra.
O meu prédio tem 33 inquilinos. Não conheço ninguém. Cruzo-me com pessoas no elevador, mas não fixo em que andar moram. É demasiada gente.
Conheço o homem do bigode, o que me apanhou a mala com preservativos no elevador, há uns anos, e que me está sempre a dizer que as cadelas estão gordas, mas nem sei como se chama - costuma cheirar a álcool; conheço o casal simpático que agora tem uma cadelinha preta, porque falamos sobre os cães, e porque são mesmo uns amores de pessoas, e não me importaria nada de ser amiga deles, mas é raro encontrarmo-nos neste universo tão grande. Vou estando a par dos dramas e alegrias dos meus vizinhos de andar, apenas porque as paredes são finas. Mas se precisar de ajuda, não saberei a quem me dirigir. Se calhar corro ao prédio da minha mãe.
A grande diferença entre o meu prédio e o prédio da minha mãe é que o dela é uma aldeia e o meu uma cidade grande, e nas cidades grandes existe a protecção do anonimato, com todas as vantagens e desvantagens que acarreta. Uma das desvantagens é a quase total ausência de histórias de vida que tanto incomodam Pacheco Pereira. Mas entre o prédio da minha mãe e o meu, para ser sincera, não sei qual deles estará em maior retrocesso civilizacional.
Depois, claro que tudo o que contei sobre a minha vidazinha é deplorável. Agora, passado a livro, como ficção do quotidano urbano, fazendo de conta que não tem nada a ver comigo, se calhar Pacheco Pereira até lhe acharia graça. Não seria grande obra, mas também não envergonharia muito, e para se ler numa tarde do mais leviano Verão, talvez servisse.

Vilhelm Hammershoi



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