País das Maravilhas

Gostava de ter gerado as minhas cadelas. De as ter tido na barriga a esticar as patinhas, a dar a volta; de fazer uma ecografia e ver os seus coraçõezinhos pequeninos bater. Gostava de as ter parido, e que mas tivessem posto sobre o peito com o pelinho encharcado de líquido amniótico, e de ter olhado para elas e concluído que, sim, eram a minha cara, tinham os meus olhos, via-se mesmo que eram minhas filhas. E dar-lhes de mamar, e que elas adormecessem a sugar o leite das minhas mamas.

Se o mundo fosse perfeito, para haver justiça entre as espécies que o habitam, não deveríamos poder escolher o que paríamos. As fêmeas, sem olhar à espécie, poderiam gerar bebés humanos ou suínos ou leões ou gatos ou ratinhos. Quando o teste de gravidez desse positivo estaríamos grávidas de uma criatura à sorte. Então, respeitaríamos os animais, atribuir-lhes-íamos direitos e já não nos incomodaria que andassem à solta na rua, porque podem morder, tal como não nos incomoda o pensamento de que haja malucos perigosos lá fora, e eles passam por nós todos os dias. Isto é capaz de vos parecer mais uma das minha ideias lunáticas, mas para mim tem uma lógica imbatível, para além de que implicaria todo um outro mundo, um outro pensamento. Se uma mulher pudesse parir um cão nenhuma das instituições ideológicas em que nos baseamos para compreender esta realidade poderia continuar a servir. Uma coisa seria certa, amaríamos os nossos filhos, independentemente das suas capacidades. Os sistemas políticos e religiosos perderiam o sentido, bem como a obsessão da competição. Creio tratar-se de um belo tema a explorar.

Esta noite a Morena veio enfiar-se na minha cama e apertou muito o dorso contra a minha barriga, como se quisesse entrar dentro de mim e ali ficar em posição fetal. Aconcheguei-me a ela. Meio a dormir, aconchegámo-nos uma à outra, e tive pena que ela não pudesse cair para dentro do meu umbigo tal como Alice resvalou para o País das Maravilhas.


Fotograma de O Anticristo, de Lars Von Triers.

Nota: agradeço muito que os leitores me lembrem e façam chegar exemplos de manifestações artísticas que se encontrem relacionas com a ideia que exponho neste texto, ou seja, a procriação aleatória interespécies. Interessam-me imagens (foto, pintura, escultura), textos (narrativa, poesia, texto dramático), inclusive para público infantil. Interessa-me qualquer manifestação artística ou ensaística que exponha um mundo no qual humanos e não humanos vivessem em igualdade. Por favor, enviem-me essas referências para o e-mail.


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