República do Padrinho

Houve um tempo não muito distante em que acreditei na democracia. Era idealista. E sou, penso. Mas, agora, uma idealista ferida, como uma leoa atingida por uma bala no flanco. Sou um animal dorido e raivoso. Não me toquem. Não se aproximem. De preferência, não existam.
Ainda há meia dúzia de anos discutia largamente com a minha tia afastada, uma senhora que viveu parte da sua vida adulta sob o salazarismo, sobre o carácter definitivo das vitórias da democracia, sobre um impossível retrocesso relativamente a direitos e deveres consagrados na Lei e na Constituição da República, como o direito ao voto e à protecção sanitária e social. Essas discussões entusiasmavam-me. Quase lhe gritava que ela não tinha motivos para ter medo. Que tudo tinha mudado. Que não voltaríamos a ter microfones da PIDE a escutar-nos por debaixo das secretárias.
Desde que o governo Sócrates vigora, tenho tido de engolir, Lei a Lei, aquilo em que acreditava com argumentos que não se baseavam na mera fé. Não era como acreditar em Deus. Sabia ter atrás de mim toda uma tradição política, exemplos de verdadeira consagração ao serviço público.
Mas, hoje, levaram-me mais fundo, mais longe. Hoje, vi anular-se, frente a estes olhos, uma eleição realizada nos termos legais, cumprindo os preceitos estipulados pela própria democracia. Os resultados do sufrágio não interessaram à "democracia". Portanto, kaput. Não acreditava que isto pudesse acontecer na Europa, no nosso tempo. Não estamos na Guiné-Bissau. Isto não é a Serra Leoa. Ou é? Digo-vos, isto, hoje, foi, verdadeiramente, a República do Padrinho.
Uma coisa é ler nos jornais que que o primo de Fulano está na China a aprender kung-fu oito horas por dia, e dar uma gargalhada, porque a realidade parece uma bd, e outra é levar com a realidade na cara, de chofre e sem jornal nem bd, que por acaso foi o que me aconteceu hoje.
Compreendi a cru que a "democracia" cria mecanismos que o compadrio tem o poder de anular. Compreendi que não vivemos em democracia, mas no compadrio. A democracia chama-se O Padrinho. Está lá O Padrinho. Vamos eleger O Padrinho. Há vários tipos de O Padrinho. Podemos escolher entre O Padrinho A, B ou C, mas as diferenças não são relevantes, e O Padrinho, eleito, faz o que lhe der na real gana. Entre isto e o poder feudal, sinceramente, venha a guilhotina.

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