Rua negra

Era Novembro e eu tinha acabado de chegar.
Nas Caldas da Rainha, em 1975, para ir para a escola atravessava uma rua negra, com alcatrão levantado nas bordas, sem passeio: um túnel de edíficios muito sujos pelo tempo, dos dois lados da via. Era uma rua cinzenta-escura do princípio ao fim. À hora a que ali passava havia ainda muito nevoeiro ou fumo ou frio opaco. A atmosfera era espessa, e eu atravessava-a como uma faca. Cruzava-me com trabalhadores apressados, vergados pela hora matinal, pelo sono, pelo cansaço, pela pressa. Caminhavam muito rápido e de passo miúdo, com os olhos postos no chão, usando casacos e bonés de fazenda axadrezada, cinzenta, preta ou castanha e fatos de trabalho escuros. Nunca lhes via a cara.
Do lado direito da estrada, no início da rua, abria-se uma porta larga para as entranhas de uma oficina. Não era uma porta, mas uma cloaca. Dentro, paredes negras de humidade e óleo velho. Quando passava frente ao portão, três homens atarracados, com mãos e roupa sujas do trabalho, gritavam-me comentários sexuais que me esforçava por não ouvir. Colava o pescoço aos ombros, comprimia as paredes dos ouvidos, fechava os olhos, fechava-me, e mesmo sem querer escutava mamas, cona, rabo, palavras que vinham adornadas com advérbios ou verbos de péssima expressão. Insultos. Eu tinha 12 anos, quase 13, e estava a ser insultada por evidenciar mamas, cona e rabo, não percebendo o desmerecimento. Era insultada por ser uma mulher. Era quanto bastava. Aos rapazes ninguém os insultava desde que não parecessem maricas.
Não tinha outro caminho para a escola. Era preciso ir por ali todos os dias.
A minha avó era uma velhinha muito branca e vestia-se toda de preto. Quando lhe descrevi o comportamento dos homens da garagem, disse-me que era assim, que não respondesse, que mulheres honradas tinham orelhas moucas.
Lembro-me muito desta rua e desta oficina. O mês passado ocorreu-me que nas próximas férias gostaria de passar pelas Caldas, lá em baixo junto ao cais, para ver se a rua negra ainda existe, se ainda está tal como a deixei. Aposto que não mudou. Em Portugal tudo demora muito tempo a mudar.

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