Manifesto com um mês de atraso

Não chamei O Novo Mundo à 2ª série de O Mundo Perfeito por mero acaso. O Novo Mundo não remete apenas para a continuação do blogue anterior. Houve, aliás, uma altura, há uns anos, em que quis dar o actual título ao ex-Mundo Perfeito, mas deixei cair a ideia, porque os títulos não interessam aos leitores, e eu era a parte secundária, nesse caso. Não valia a pena confundir as pessoas.
Sempre tive algumas dificuldades em definir exactamente sobre o que vou escrevo. O registo é pessoal, mas nem sempre é diarístico. Exponho ideias sobre o mundo, o que sempre desejei fazer: enquanto filha única que passou muito tempo sozinha, acabei por me tornar demasiado reflexiva. Mas o registo diarístico da minha vivência transporta também uma visão das pessoas, da sociedade, dos hábitos, do que somos e parecemos. Ou seja, ele também é reflexivo.
O título deste blogue iluminou essa minha dificuldade: escrevo sobre o novo mundo. É isso. Este blogue é sobre o novo mundo. Sobre um mundo que vemos pela primeira vez, que nos parece colorido demais, estranho e aberrante, como aqueles homens pardos que os navegadores portugueses viram pela primeira vez ao chegarem às praias do Brasil. É exactamente isso: um mundo que já existe e funciona, do lado de lá da floresta, mas do qual ainda só vislumbramos algumas manifestações: os índios na praia.
A exposição que tenho vindo a fazer desse novo mundo tem-me valido as maiores críticas por parte dos leitores, e alguma proscrição enquanto autora. Os meus assuntos não são correctos e tornam-se muito difíceis de engolir por uma quantidade enorme de pessoas que me visita porque pretende ler sobre colonialismo ou cães ou mulheres ou homens ou o que penso ao sábado enquanto leio o jornal no café, com as cadelas ao pés. Imagino que para os adeptos da sagrada família tradicional, seja difícil lerem o que tenho a dizer sobre o assunto, e não concordem. Para os que defendem o primado da natureza sobre todos os actos humanos, calculo que seja violento ser confrontado com a minha total defesa de uma aliança natureza-ciência, e detestem tal ideia. Por outro lado, imagino que seja mesmo muito difícil para os retornados que voltaram a Moçambique, e que desejam ver o passado esquecido e enterrado, encontrá-lo escarrapachado nestas páginas, todo esventrado ao alcance de qualquer olhar. Mas eu acredito que para voltar a semear um campo, primeiro temos de o desminar completamente. Depois, sim, podemos plantar.
Concluindo, isto é um blogue tramado, e serve-me sobretudo para arranjar inimigos, que nunca sei de onde caem, mesmo fazendo questão de informar que este é um blogue maldito, e de não poderem alegar que vêm ao engano.
É curioso que eu também seja uma pessoa do velho mundo, educada nos velhos valores; também acreditei na sagrada família, na natureza, no que parece que nunca muda - ou seja, eu também vim desse lugar. Não pude foi ficar por lá. A vida que acontece à minha volta não permitiu. Não sou cega nem surda nem insensível ao que me rodeia,
Ainda há duas horas comprei a revista Maria para a levar à minha mãe, e dois assuntos chamaram a minha atenção, ao folheá-la: uma fotografia de Elisabeth, a belíssima mãe britânica de 67 anos, com o filho Jolyon nos braços, sorridente e feliz, e a legenda "vou criar o Jolyon sozinha", p. 18; a reportagem sobre Adriana e Murina, duas lésbicas brasileiras que tiveram dois gémeos na barriga de uma, com os óvulos da outra, e que agora disputam ambas o estatuto de mães, quando a lei só permite a existência de uma, p. 34. Bem, parece-me que a lei brasileira vai ter que mudar. E depois as dos outros países, por arrasto. Porque, reparem, isto é a revista Maria, a publicação mais popular em Portugal. Um sucesso de vendas. Não se trata de uma publicação especializada para um público seleccionado, Não há vida sem Maria. A revista Maria condiciona o comportamento social dos portugueses, desde que existe. A moda das mães solteiras e do sexo oral e depois anal e por aí fora, dependeu largamente da cobertura da revista Maria. Há duas coisas que a minha mãe lê na vida: as orações do padre Cruz e a revista Maria.
Portanto, caros leitores, quando o novo mundo chega à revista Maria, acabaram-se os comportamentos de excepção. Já nada é excepção. Os dois casos que acabei de relatar estão tão legitimados como a gravidez de dois meses de Clara de Sousa, que já passou dos 40, p. 112.
Tenho muita pena de vos anunciar isto - sei que é difícil, mas convém que comecem a habituar-se: estais, para o resto das vossas vidas, condenados ao novo mundo.

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