O morto

Todos as manhãs o encontro, quando vou apanhar o metro de superfície, a caminho do trabalho. Ele vem de baixo, do lado do Bairro Bento Gonçalves, com a mulher e o filho. É sempre muito cedo, e o ar permanece gasoso dos restos de madrugada. A mãe limpa a boca ao miúdo, que ainda traz marcas de um bigode de leite; o pai ajeita-lhe a camisa dentro dos calções. O garoto é a cara do pai. Que lindo menino! Contemplo-os e penso que devem ser tão felizes as pessoas que têm assim um filho no qual podem enterrar fundo todo o amor. São jovens pais. Ela é uma mulher normal, e percebe-se que gosta muito do marido. Talvez seja um bocadinho dependente. Talvez tenha herdado essa tradição da sua mãe: não fazer nada sem o marido; viver para o marido. Ele gosta dela. Não sente paixão nem nunca sentiu, mas gosta dela. Muito. Sente gratidão e amizade. E, mais importante, ela é a mãe do seu filho. Aquela riqueza saiu do seu corpo, formou-se toda lá.
Contemplo-os tão cedo a caminho do trabalho. Vão apressados para não perderem o transporte. A mulher olha sempre muito para mim. De alto a baixo. A criança não repara. Ele não vê nada, porque morreu há uns anos. Vai só ali. Eu é que acredito em fantasmas, e, como acredito, posso vê-los.

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