Como Lúcia se livrou dos primos

Lúcia


Ontem, fez 92 anos que Nossa Senhora não apareceu aos pastorinhos. Talvez a luz branca da Senhora tenha pousado sobre a azinheira de metro e meia na Cova da Iria, e aguardado o tempo regulamentar concedido aos atrasos, mas nesse dia os pastorinhos tinham sido convocados para estar presentes na sede do concelho com o objectivo de ser violentamente interrogados sobre os acontecimentos que diziam presenciar. Nossa Senhora só lhes apareceu no dia 19, estando eles já libertos do algozes de Ourém. No entanto, no Santuário de Fátima comemora-se a aparição da Senhora a 13 e não a 19 de Agosto.

Baseio-me nos escritos de Lúcia, que li há ano e meio, com o objectivo preciso de contrariar a opinião de um amigo herege, que a acusava de horrores, inclusive de responsabilidade pela morte dos primos. Prometi-lhe que ia ler as memórias de Lúcia e assim fiz.

Terá Lúcia alguma culpa na morte dos primos? Terá o meu amigo razão? Vejamos, segundo as suas memórias, ela era a única que via e ouvia a Senhora e que com ela conseguia comunicar. Jacinta via, mas não ouvia, e Francisco, pobre rapazinho impuro, não via nem ouvia coisa alguma. Ajoelhava e rezava, compungindamente, fiado no relato da prima e da irmã.

Continuando a seguir as memórias de Lúcia, esta revela que o comportamento dos três passou então a ser influenciado pelas palavras da Senhora, a qual lhes dizia que deveriam sofrer muito, cumprir muita abstinência de todas as coisas, oferecer muitos sacrifícios ao Senhor em nome dos pecados da humanidade. Foi esta a mensagem que Lúcia transmitiu aos primos, mais novos, que começaram a recusar comer e beber, durantes dias inteiros.

Saíam de manhã para o campo, com o gado a apascentar, e pelo caminho distribuíam o farnel pelos pobres, mais pobres, que encontravam. A Senhora, segundo Lúcia, exigia-lhes sacrifícios. Um dia, Francisco foi repreendido pela irmã por ter sido apanhado a comer frutos silvestres, roído pela fome. De dia e de noite, os irmãos carregavam uma corda apertada à cintura para sentirem a dor permanente. Mesmo depois de adoecerem gravemente, permaneciam de corda apertada, flagelando-se por pecados que nem compreendiam. Lúcia relata que muitas vezes considerava exagerada a abstinência dos primos, mas que a sua fé era inamovível. Ardendo em febre, recusavam beber água, para agradar à Senhora. Quando a morte de um dos primos já era esperada, confidenciou-lhe Lúcia que a Senhora tinha mandado dizer que podia aliviar o nó da corda, porque já não era necessário tal sacríficio. Por outro lado, noutros momentos via-se obrigada a chamar-lhes a atenção porque os via comportarem-se como crianças. Será oportuno esclarecer que Lúcia não nos revela que sacrifícios realizava. Sabemos apenas que rezava muito. Fiquei com a impressão que rezava de barriga cheia ou teria valorizado o seu próprio sacrifício. Portanto, segundo as suas memórias, que li de fio a pavio, não é demais salientá-lo, ela rezava enquanto os primos fiéis, por sua ordem, não só faziam o mesmo, como se ciliciavam através da fome, da sede e da dor física. Vítimas da tortura sugerida por Lúcia, cuja opinião os pequenos irmãos valorizavam, caíam feridos de morte por inanição, pouco depois.

Posto isto, e considerando que a única que ouvia a Senhora e comunicava as suas palavras era Lúcia, podemos concluir que motivou a morte dos primos à fome, cabendo a ordem de execução à Senhora. Mas é possível ir mais longe, ilibando a Senhora deste grande equívoco. A minha ideia de divino não se encaixa numa moldura ritual de sacrifícios de vida. Isso é paganismo ancestral. Por uma questão de pura lógica, à ideia equilibrada e ordenada de um Deus, seja qual for a sua forma, não poderá agradar a ruptura que consiste numa morte em seu nome. Uma ideia sensata de Deus tenderá a encará-lo como algo que procura a paz, o bem-estar físico e mental e o usufruto do benefício da vida. Não há Deus algum na morte nem no sangue nem no sacríficio, e se o Cristianismo nos legou essa herança, lamento, mas está errada. Que Deus seria esse capaz de exigir tanto sangue? Um Estaline? Um Hitler? Não me custa a acreditar que Jesus Cristo fosse um homem santo, mas Cristo morreu por uma questão política, assunto cabalmente esclarecido do ponto de vista histórico, e que em nada colide com o teológico. Se era um homem santo, ressuscitaria ao terceiro dia, naturalmente, porque no campo do misticismo religioso tudo é possível. Não meto aí o nariz. Nem sequer questiono que uma luz intensa, dentro da qual se encontrava uma senhora toda da branco e muito linda tenha aparecido aos pastorinhos (excepto ao desgraçado do Francisco). Se calhar apareceu. Não faço ideia. Agora, o que para mim é claro como água é que uma Senhora oriunda do Céu não pode ter pedido a crianças inocentes tão graves sacríficios, e muito menos poderia, em 1917, três meses após a Revolução Russa de Fevereiro, terminando esta série de aparições no mês da revolução de Outubro, anunciar o fim de um comunismo cujos resultados ainda não se conheciam. E digo que não, porque não tem lógica. É uma equação que não me dá certa, e o mundo, como sabemos, é matemática pura. O resto é psicose sado-masoquista ou alucinação maníaco-obsessiva. Eu, por exemplo, tenho um tio que sempre ouviu vozes, mas mantenho-me o mais distante que posso.

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