Como Lúcia se livrou dos primos
Baseio-me nos escritos de Lúcia, que li há ano e meio, com o objectivo preciso de contrariar a opinião de um amigo herege, que a acusava de horrores, inclusive de responsabilidade pela morte dos primos. Prometi-lhe que ia ler as memórias de Lúcia e assim fiz.
Terá Lúcia alguma culpa na morte dos primos? Terá o meu amigo razão? Vejamos, segundo as suas memórias, ela era a única que via e ouvia a Senhora e que com ela conseguia comunicar. Jacinta via, mas não ouvia, e Francisco, pobre rapazinho impuro, não via nem ouvia coisa alguma. Ajoelhava e rezava, compungindamente, fiado no relato da prima e da irmã.
Continuando a seguir as memórias de Lúcia, esta revela que o comportamento dos três passou então a ser influenciado pelas palavras da Senhora, a qual lhes dizia que deveriam sofrer muito, cumprir muita abstinência de todas as coisas, oferecer muitos sacrifícios ao Senhor em nome dos pecados da humanidade. Foi esta a mensagem que Lúcia transmitiu aos primos, mais novos, que começaram a recusar comer e beber, durantes dias inteiros.
Saíam de manhã para o campo, com o gado a apascentar, e pelo caminho distribuíam o farnel pelos pobres, mais pobres, que encontravam. A Senhora, segundo Lúcia, exigia-lhes sacrifícios. Um dia, Francisco foi repreendido pela irmã por ter sido apanhado a comer frutos silvestres, roído pela fome. De dia e de noite, os irmãos carregavam uma corda apertada à cintura para sentirem a dor permanente. Mesmo depois de adoecerem gravemente, permaneciam de corda apertada, flagelando-se por pecados que nem compreendiam. Lúcia relata que muitas vezes considerava exagerada a abstinência dos primos, mas que a sua fé era inamovível. Ardendo em febre, recusavam beber água, para agradar à Senhora. Quando a morte de um dos primos já era esperada, confidenciou-lhe Lúcia que a Senhora tinha mandado dizer que podia aliviar o nó da corda, porque já não era necessário tal sacríficio. Por outro lado, noutros momentos via-se obrigada a chamar-lhes a atenção porque os via comportarem-se como crianças. Será oportuno esclarecer que Lúcia não nos revela que sacrifícios realizava. Sabemos apenas que rezava muito. Fiquei com a impressão que rezava de barriga cheia ou teria valorizado o seu próprio sacrifício. Portanto, segundo as suas memórias, que li de fio a pavio, não é demais salientá-lo, ela rezava enquanto os primos fiéis, por sua ordem, não só faziam o mesmo, como se ciliciavam através da fome, da sede e da dor física. Vítimas da tortura sugerida por Lúcia, cuja opinião os pequenos irmãos valorizavam, caíam feridos de morte por inanição, pouco depois.
Posto isto, e considerando que a única que ouvia a Senhora e comunicava as suas palavras era Lúcia, podemos concluir que motivou a morte dos primos à fome, cabendo a ordem de execução à Senhora. Mas é possível ir mais longe, ilibando a Senhora deste grande equívoco. A minha ideia de divino não se encaixa numa moldura ritual de sacrifícios de vida. Isso é paganismo ancestral. Por uma questão de pura lógica, à ideia equilibrada e ordenada de um Deus, seja qual for a sua forma, não poderá agradar a ruptura que consiste numa morte em seu nome. Uma ideia sensata de Deus tenderá a encará-lo como algo que procura a paz, o bem-estar físico e mental e o usufruto do benefício da vida. Não há Deus algum na morte nem no sangue nem no sacríficio, e se o Cristianismo nos legou essa herança, lamento, mas está errada. Que Deus seria esse capaz de exigir tanto sangue? Um Estaline? Um Hitler? Não me custa a acreditar que Jesus Cristo fosse um homem santo, mas Cristo morreu por uma questão política, assunto cabalmente esclarecido do ponto de vista histórico, e que em nada colide com o teológico. Se era um homem santo, ressuscitaria ao terceiro dia, naturalmente, porque no campo do misticismo religioso tudo é possível. Não meto aí o nariz. Nem sequer questiono que uma luz intensa, dentro da qual se encontrava uma senhora toda da branco e muito linda tenha aparecido aos pastorinhos (excepto ao desgraçado do Francisco). Se calhar apareceu. Não faço ideia. Agora, o que para mim é claro como água é que uma Senhora oriunda do Céu não pode ter pedido a crianças inocentes tão graves sacríficios, e muito menos poderia, em 1917, três meses após a Revolução Russa de Fevereiro, terminando esta série de aparições no mês da revolução de Outubro, anunciar o fim de um comunismo cujos resultados ainda não se conheciam. E digo que não, porque não tem lógica. É uma equação que não me dá certa, e o mundo, como sabemos, é matemática pura. O resto é psicose sado-masoquista ou alucinação maníaco-obsessiva. Eu, por exemplo, tenho um tio que sempre ouviu vozes, mas mantenho-me o mais distante que posso.