Misericórdia

No fim-de-semana que terminou cumpriu-se mais uma vez a tradição em Barrancos. Tradição é um eufemismo. O que isso quer dizer é que mais uma vez o povo se juntou para matar o touro na arena, ofício que realizam colectivamente, com entusiasmo, batendo palmas entre expressões do mais autêntico júbilo. Um concerto do Tony Carreira não mereceria tanta atenção, porque o Tony Carreira, está bem que é um cantor de qualidade, mas não é a tradição e não sangra objectivamente.
Uns vizinhos aqui do bairro, que estavam há bocado a almoçar umas entremeadas com batata frita no café Colina, diziam que aquilo é selvajaria, que não se faz, matar o animal na arena, que já não estamos nesses tempos antanhos.
No momento em que o diziam, pelo país fora, 35 camiões repletos de porcos, borregos, carneiros e outra bicharada atravancada num espaço mais pequeno que o seu próprio corpo, encaminhavam-se para os respectivos matadouros municipais, onde se descarregaram os animais em direcção à linha de montagem da morte industrial, sem ritual e sem palmas. Acredito que isto possa parecer frio, mas para estes animais, e considerando as condições em que foram engordados até à matança, a morte industrial pode considerar-se um momento de pura misericórdia humana. A benção da vida não é uma benção para todos. E era isto que queria explicar ao senhor Manel e ao Zé Gordo. É que os tipos de Barrancos são uns selvagens, mas não estão sozinhos.

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