Eu não sou normal

Eu não sou normal, 2009 [imagem obtida através de vídeo visionado em computador]


As instituições preocupam-se muito com natureza social dos progenitores.
Para se ser pai e mãe bem aceites convém cumprir-se alguns requisitos básicos como juventude, heterossexualidade e, de preferência, matrimónio.
Há uns anos, numa reunião sobre questões pedagógicas, ouvi a directora de um centro de acolhimento de crianças retiradas aos pais pelo Tribunal, afirmar que estaria fora de questão entregar as suas criancinhas a algo que não fosse uma família normal, com pai e mãe, porque, dizia ela, seria impossível saber a companhia que uma mãe ou um pai sozinhos poderiam levar para dentro de casa. Sabia lá ela, por exemplo, o que um casal de homossexuais faria à frente das crianças.

Estava a esquecer-se que as suas crianças, infelizmente, eram provenientes de jovens agregados heterossexuais que faziam tudo frente aos meninos e aos próprios meninos. As pessoas, para confirmarem as suas convicções, esquecem-se do que não lhes serve. Desvalorizam, que é como se nunca lhes tivesse acontecido.

Lembrei-me disto hoje, sentada na esplanada do café Colina, enquanto a Micas e a Morena pediam bocados de croissant ao senhor da mesa da ponta, fugindo às criancinhas que queriam montá-las e puxar-lhes as caudas.

Não me sento no café apenas para beber a bica e ler o jornal. Sou uma observadora de café já com certo grau de profissionalismo. Aí posso ver e ouvir, passando relativamente despercebida, porque sou apenas aquela senhora sozinha que gosta de ler e tem as cadelas velhotas, um belo disfarce. No café consigo penetrar no mundo, mantendo-me fora dele. Estou ali de viagem, e quero estar. Quero ouvir as pessoas que não são como eu. Que julgo que não são como eu. Preciso de me situar, por semelhança ou antagonismo, e, ao ouvi-las, constrói -se, para mim, um novo lugar no mundo - um lugar que refaço constantemente, que ajusto, que me esforço por compreender. Quem sou eu e para que sirvo? A resposta a estas perguntas tem mudado ao longo dos anos.

Ao domingo de manhã há pelo café muitos pais com os seus filhos de gestação fácil. Demoro-me a observá-los. Que tipo de mãe serei eu, quando for mãe?
Uma décima parte dos pais e mães normais que observo não têm a menor vocação nem capacidade emocional para ter filhos. Aquilo saiu-lhes na sorte grande, ou acharam que estava na moda e também queriam experimentar, ou foi pressão da cultura de massas - namorar, ter filhos, receber o subsídio de desemprego - não faço ideia. Ser como todos os outros do bairro, penso eu.
A nossa cultura escavou em todos um incontornável fosso masoquista, ou ninguém pensaria em tal coisa. Por que quero eu ser mãe? Não tenho uma vida tão livre, tão agradável? Para que quero complicar os meus dias? Não consigo responder a esta questão, ainda.

Reparo que é um alívio, para uma parte dos meus vizinhos, livrarem-se dos filhos. Estão-se completamente nas tintas para o que fazem, desde que os deixem sossegados a fumar, a conversar sobre bola ou a vida alheia enquanto bebem cervejas. Os filhos são um peso, um parasita que têm de suportar. Compram-lhes o que pedirem, desde que se vão embora de novo. Mais meia hora de sossego!
As crianças andam à volta das mesas a criar-se sozinhas, o que acaba por não ser necessariamente mau.

Compreendo que para o comum mortal que precisa de descansar da semana de trabalho não é fácil gostar dos filhos. Para se ser um bom pai ou uma boa mãe é preciso ter a cabeça arrumada, saber distinguir autoridade e violência, afecto e suborno emocional. Uma parte dos pais precisaria que alguém ainda cuidasse deles. São imaturos, inconsistentes, querem outra vida, não suportam a que têm. Como podem os que não suportam a vida, dar vida?

Observo. Penso que talvez eu desse uma boa mãe. Uma mãe amorosa e atenta. Uma mãe exigente, com alguns ataques de mau génio, certo, mas uma boa mãe.
Estou em crer que as assistentes sociais encarregadas do meu processo de adopção não pensam o mesmo; não me consideram uma família exequível, e não estão muito certas sobre as companhias que uma mulher como eu poderá levar para dentro de casa.
Para elas, por muito que não o admitam, eu não sou normal.



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