Política fiscal para tansos

Vivemos inseridos em estruturas de comportamento económico, social, psicossexual, profissional, etc. Já existiam quando tomámos conhecimento do mundo ou foram criadas durante o nosso tempo de vida, tendo entrado nos nossos hábitos.
O hábito é um facilitador do quotidiano, porque nos situa relativamente aos diversos focos da nossa vida. Organiza-nos e equilibra-nos. O problema do hábito é que a certa altura se transforma num molde tão confortável que há quem pense não ser possível ultrapassá-lo, criar outro hábito, eventualmente melhor.
Dou um exemplo. Quando comecei a trabalhar, em 1984, ninguém declarava rendimentos. É possível que os meus patrões enviassem para as finanças todos os meus dados, mas eu sei que não entregava papelada alguma, e andei assim durante muito tempo. É evidente que descontava para a Segurança Social e etc., mas a coisa acabava aí.
Só por volta de 1990, mais coisa, menos coisa, surgiu essa moda da declaração do IRS. Apareceu uma roulote em Cacilhas que dizia "entregue aqui a sua declaração", e os funcionários ajudavam a preencher a papelada. Diziam-nos que era obrigatório, e que podíamos declarar determinadas despesas com a saúde e a educação, e até receber de volta o excesso de descontos que havíamos feito. E começámos todos a declarar, porque o que a gente queria era receber de volta o excesso, não é que nos interessasse de onde vinha o que se recebia, mas o importante era que se recebia. Aí não havia dúvidas.
Foi assim que o IRS entrou nas nossas vidas, transformando-se numa espécie de rito de passagem. Quem não cumpre o rito é penalizado e excluído de muitos actos importantes da vida civil, tal como a concebemos. Por isso, ao longo do ano, todos vamos recolhendo recibos de consultas médicas, manuais escolares, seguros de saúde e planos poupança-reforma e educação, entre outros. Para deduzir. Os vendedores de certos produtos usam como técnica de aliciamento o argumento de que o colchão x ou a cadeira y são dedutíveis no IRS. E resulta. Isto é estar habituado ao sistema. Adaptámo-nos. Aprendemos desta maneira e não percebemos como poderá a vida fiscal existir de outra forma.

É verdade que no famoso debate com Sócrates, Francisco Louçã demorou muito tempo a reagir à acusação relativa à exclusão de algumas deduções fiscais, nomeadamente as da saúde, educação e planos poupança-reforma. Respondeu, mas ao lado, e em política a resposta tem de vir na ponta da língua. Loucã demorou-se a pesar as contrapartidas políticas da admissão desse ponto do programa do partido. Acabou por esclarecer, já na ponta final, mas não em tempo muito útil. E eu quero voltar a isto, porque, como é óbvio, concordo com Louçã, e penso que este aspecto do seu programa é um belo exemplo de democracia e merece ser explorado, no sentido contrário ao pensamento capitalista de Sócrates.

O que são deduções fiscais? O que querem elas dizer? Dizem-nos o seguinte: "sim, nós, governantes, sabemos que a educação universal deve ser gratuita, bem como os cuidados generalizados de saúde. Também estamos conscientes que a atribuição de pensões dignas é uma obrigação do Estado. As referidas obrigações estatais estão consignadas na Lei e na Constituição da República, mas a verdade é que não comparticipamos como deveríamos, ou seja, contornamos a Lei e a Constituição, porque nada disto é realmente gratuito, e as pensões são miseráveis, tudo por causa da economia de mercado; é por isso que vos iludimos com a ideia de que ao aceitarmos deduzir as vossas despesas vos estamos a dar benesses. Não estamos a dar-vos nada, porque vocês, ó mulas, já descontaram todos os meses para a Segurança Social, e outros subsistemas de saúde, como a ADSE, ou para o IRS, e o IVA, e o IMI, e o Imposto Único de Circulação, e o camandro que a gente aqui inventa para vos esmifrar a carteira. O que estamos é a tentar devolver-vos uma percentagem do que é vosso, e apenas porque conseguimos daí tirar dividendos políticos, porque vocês, ó tansos, não fazem a menor ideia sobre como funciona a máquina fiscal."

É exactamente isto que nos estão a dizer de cada vez que nos aceitam, para efeitos de dedução no imposto que já nos cobraram, um recibo do médico especialista privado, porque, se tivéssemos de esperar pela consulta marcada no hospital, através do posto médico, demoraria, sejamos optimistas, 10 meses. Ora, ninguém deveria ter de esperar 10 meses por uma consulta médica, quando desconta todos os meses do seu ordenado para a Segurança Social.

Claro que a alternativa seria termos serviços de saúde e de educação verdadeiramente gratuitos, como noutros países da Europa. E isso seria mudar o hábito, alterando uma estrutura edificada sobre o erro. Mas é sempre mais difícil mudar. É preferível viver sobre o erro, alegando que o erro é o melhor dos males.

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