Com a espada sobre a cabeça

O homem foi mostrar-me a casa para alugar. Não é que queira realmente mudar de casa, e muito menos de bairro, é só aquela insatisfação... Só fui porque tinha marcado a visita, e, embora me tivesse arrependido, o homem não me largaria o telemóvel, e eu odeio o toque do telemóvel, e odeio que me telefonem a dizer que não atendo o telemóvel. Detesto conversas telefónicas e respectiva dependência e parafernália.
O homem foi mostrar-me a casa para alugar. Ao chegar, percebi-lhe a respiração, e achei que estava a meia hora de um ataque cardíaco. Ao telefone parecia-me ter uns 70 anos, ao vivo tinha 40 e tal. Gorducho, de bigode, com uma respiração acelerada, congestionada. Tinha dificuldade em andar. Subiu, gemendo, os cinco degraus de escadas. Mostrou-me a casa sentado. Fui circulando pelas tristes assoalhadas, enquanto me dizia, e como vê, todos os quartos têm guarda-roupa, e eu ouvia-o na cozinha, já não há casas desta qualidade por este preço. Resfolegava. Tive vontade de me sentar à sua frente e dizer-lhe, o senhor já percebeu que está à beira de um ataque cardíaco ou de um acidente vascular cerebral, não percebeu? Era óbvio que aquele corpo não aguentava muito mais. Mas seria impossível que ele não o soubesse, que o médico, a mulher, os filhos, os colegas não lho tivessem dito já. E ele ali andava, com a espada sobre a cabeça, já a roçar-lhe o cabelo. Sabendo, mas acreditando piamente que, com um bocado de sorte, não lhe aconteceria. Aos outros, sim. Agora, no seu caso?! Não, claro que não! Foi neste momento que me revi nele. Uma parte de mim também sabe que se não mudar, morre amanhã. E resiste. Sabe, mas resiste.

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