O eugenismo aplicado ao trabalho

O mundo está cada vez mais fascista.
Quando li que o nosso Governo se prepara para, até 2012, introduzir testes ao álcool e drogas nas empresas, felizmente estava sentada, e assim evitei lesionar um músculo qualquer.
A liberdade é um valor que não se troca por nada. O direito à vida privada, e a fazer nela aquilo que é privado, ficará exposto a todas as violações, se tal medida se concretizar. Tenho o direito a beber meia garrafa de uísque todas as noites, se me apetecer. Tenho o direito de fumar dois charros à hora do almoço. Fora da minha profissão estou no meu espaço privado, e o meu espaço privado, desculpem, é meu.
Argumentar que esta medida é meramente preventiva e se deve a questões de saúde pública é uma desculpa incoerente. Se fosse verdadeiramente uma questão de saúde pública, preocupar-se-iam em realizar rastreios à diabetes ou a comportamentos alimentares altamente lesivos da saúde. Ninguém quer saber se comi açúcar ou hidratos de carbono?! Para isso não há testes?
Não há, porque, em princípio, não afecta a produtividade. O que está aqui em causa é esse valor máximo, e a possibilidade de se despedir com justa causa em seu nome. O que que aqui está em causa é a cada vez maior interferência das gestões nas vidas privadas dos geridos, transformando as empresas em pequenas ditaduras dentro da ditadura maior. Esta ideia do cidadão-escravo da empresa magna, vigiado por ela, e assim obrigado a manter comportamentos padrão, como se vivesse num big brother, remete-me para a literatura de ficção científica de Aldous Huxley e de Isaac Asimov. Era ficção, mas começa a tornar-se realidade.
Se as empresas tivessem quaisquer preocupações sanitárias, contratariam equipas de apoio médico especializado, às quais os empregados se pudessem dirigir voluntariamente, e em total anonimato.
Imaginemos um funcionário que tem problemas com cocaína: se não afectar a empresa, e geralmente não afecta, durante um largo período, é a ele que cabe decidir se quer resolver esse problema e quando. Mas talvez às empresas não interesse detectar os consumidores de cocaína, porque esses trabalham sem horas. Interessa-lhes saber se o funcionário x ou y, normalmente os que reclamam direitos laborais, bebe vinho à hora do almoço. É que se beber torna-se mais fácil pô-lo a andar rapidamente...
A recente vaga de dezenas de suicídios em grandes empresas francesas, com órgãos de gestão a que dificilmente se poderá chamar gente, mostra-nos que é possível uma empresa reduzir um cidadão a nada. Chama-se a isto escravidão. Há relatos de escravatura, de há 200 anos, dando conta que muitos dos escravos levados para o Brasil, perante o tratamento de que eram alvo, preferiam matar-se ou ser mortos, a viver tal como os obrigavam. Parece que isto anda a acontecer de novo. Parece que andamos a regredir civilizacionalmente. Se isto não é grave, precisamos de reformular as nossas noções de gravidade.
O que se pretende com as alegadas medidas higienistas é, no fundo, um "eugenismo "do mercado de trabalho. O trabalhador deverá corresponder ao padrão-máquina. As empresas não querem pessoas, mas máquinas, e se essas máquinas forem de carne, melhor, porque são mais flexíveis, mais funcionais.
O trabalho não é a actividade a que nos dedicamos apenas para pagar as contas. Mesmo quem não vive essa pressão arranja uma ocupação, nem que seja sentar-se na bolsa a controlar as subidas e descidas do mercado de valores onde investiu a maquia do Euromilhões.
Precisamos de trabalhar porque o trabalho estrutura as nossas vidas, portanto, estrutura-nos. Aquilo que fazemos, e a satisfação que obtemos perante a sua concretização, compensa o nosso esforço e ajuda a dar sentido à nossa existência. Se assim não for, é a pior das escravaturas.
Num mundo em que se agravam cada vez mais as relações laborais, admira-me que se considere anacrónico ouvir a esquerda falar dos interesses do patronato e em direitos dos trabalhadores.

Devia ser tão fácil, 2009

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