Tumulto

Sábado, nove da manhã, estendida ao comprido no chão na sala de estar.
Bom dia, Micas querida, velhota bebé da doninha! Como está a hoje a minha menina?! Dói a perninha, dói, querida? A dona cura a perninha da menina. Bebé linda. [Beijinho, beijinho, festinha, festinha...] Tens manchas na barriguinha?! Deixa ver. Pois tens! Estás velhota. Tens manchas como as das mãos da avó. Também já tens muitos anos, não é?! Deixa lá, a dona também já tem 46 anos, quase 47, 48, 49, quase 50. Também vai a caminho. [Beijinho. beijinho.] Mas têm sido uns 40 muito emocionantes, Micas. [Pausa. Beijinho.] E, pensando bem, agora, os trinta também não foram nada sossegados. O tumulto que por aqui andou! E aos 20, se formos ver, também aconteceu muita coisa. Da adolescência é melhor nem falar. Nem da infância. Olha, Micas, tem sido uma vida acidentada, cheia de altos e baixos, e curvas e atalhos e cruzamentos e bifurcações e estradas que parece que não têm saída, mas lá se encontra um atalho... e tu tens testemunhado os últimos onze anos, sabes que não estou a mentir, querida. [Beijinhos. Festinhas. Algum silêncio.] Afinal, por que é que estou sempre a dizer que a vida é uma merda, sabes? E que não vivi nada, como os outros, sabes? Não sabes?! Passo a vida a reclamar?! Achas que passo a vida a reclamar? Se calhar passo. Mas, minha querida, tenho um medo de estar aqui e de não aproveitar o que tenho. De não saber gozar o dom da vida, o benefício das experiências dos sentidos: ver, escutar, cheirar, sentir... Saborear, não. Saborear ja saboreei muito, não te parece?! [Beijinho.] E, agora, se fôssemos à rua e ao jornal e ao café, querias?
Logo vi que a ideia te diminuiria as dores!

Mensagens populares