Um tempozinho de morte

Tem 34 anos. Nasceu numa aldeia perto de Coimbra. Nunca disse uma asneira, nunca lhe autorizaram um caraças, nem mesmo quando cortava um dedo a descascar batatas.
Quando acabou a escola secundária, a madrinha, uma senhora formada, encaminhou-a para o curso que considerava o melhor para se ser professora de Matemática. Era, de todos, o mais difícil, o que exigiria mais estudo e mais prática, portanto, aquele que a prepararia melhor. Fez o curso na prestigiada Universidade de Coimbra sem uma disciplina em atraso. Participou nos rituais de iniciação, como caloira e como veterana. Comprou o fato académico, inscreveu-se na tuna, interveio activamente nas Semanas das Fitas sem beber um copo a mais e nunca cedendo à tentação de não estudar as suas três horas por dia, regime que se tinha imposto fora da época de exames. Pensa, hoje, que se tivesse seguido outro curso, eventualmente aquele que desejava, talvez pudesse ter terminado com melhor média. Mas, paciência, também não desgosta do que tirou. E conseguiu empregar-se com facilidade!
Conheceu na faculdade o primeiro namorado, com o qual casou na igreja, numa festa para mais de duzentas pessoas. Um rapaz de famílias honestas, que estudou para engenheiro. No casamento, os convidados tratavam-nos por senhora doutora e senhor engenheiro. Os pais ofereceram-lhe o apartamento onde vivem, devidamente mobilado. Com as prendas em dinheiro compraram um carrinho e começaram um bela vida sem dívidas.
Engravidou duas vezes. Teve uma menina e a seguir um menino. Crianças desenxovalhadas, educadas, que vão à catequese. Desdobra-se em cuidados com os filhos. Esforça-se por conciliar o emprego com os horários das crianças. Embora o marido ajude, deita-se tarde. Ao domingo, apetecia-lhe descansar, mas vão sempre almoçar a casa dos pais; numa semana os dela, na outra os do marido. As crianças precisam de conviver com os avós. E os pais ajudam sempre que é preciso, e dão bons conselhos sobre como levar uma vida cordata, sem sobressaltos.
No emprego, ouve, cala e executa. Não tem opinião sobre nada. Ter opinião poderia originar sarilhos,e mais vale não se meter neles, que tem dois filhos para criar. Por isso, faz tudo como lhe mandam, independentemente do que mandam ou como mandam. Não está ali para questionar instruções. Pagam-lhe para as executar. Também nunca respondeu ao pai nem à mãe nem à madrinha nem aos professores. Nunca deu um desgosto aos pais, não seria agora... Não tem vocação para reclamar.
Ouço-a e sinto-me cansada. Há pessoas que nunca saltam dos eixos. Ouço-a e penso que, no seu lugar, alguém já me teria encaminhado para uma instituição psiquiátrica. Ouço-a e penso que a sua vida é um campo de trabalhos forçados ao qual se habituou. Ouço-os a todos, muitas vezes, porque eu estou ali; eu tenho tempo para ouvir. Um dia falha-lhes o coração, e depois, viveram quanto?
Ouço-a e sinto uma enorme compaixão que não posso revelar. Ocorre-me que de vez em quando acontece-lhes morrerem cedo. Serem modelos de vida tradicional, autorizada, não lhes concede moratórias vivenciais. Dá-lhes uma síncope qualquer e ficam-se. Costuma-se dizer, morreu tão nova, deixou filhos por acabar de criar, logo agora que começava a levar uma vida mais descansada, foi-se, coitada, e não gozou a vida. Ouço-os a todos e penso que deve ser um alívio, esse tempozinho de morte. Devem chegar ao final do túnel da luz branca e pensar, foda-se, finalmente vou descansar sem ninguém a dizer-me o que devo fazer, e a que horas. Foda-se, que bela vida se leva nesta morte!

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