Colonizada



Já houve quem me escrevesse perguntando se gosto da frase final que remata a apresentação do livro. "É possível descolonizar um país, mas é impossível descolonizar uma alma".
Confesso que comecei por estranhá-la, por constituir uma visão de fora, mas com os dias, conforme a vou relendo, tenho vindo a percebê-la. Aquela frase reflecte-me?
Vejamos este exemplo: escrevi a um amigo com imensos contactos em Angola e Moçambique, pedindo-lhe que tentasse divulgar a existência do livro nesses países. Gostava de ser lida em África; tenho este fetiche. Gostava que os africanos pudessem conhecer o que representou todo aquele processo para alguém que não tinha culpas directas no cartório da sua repressão, mas que se viu envolvido no tumulto, atravessando grande injustiça e violência como incauta testemunha. É provável que não gostem do que escrevo, como muitos retornados (aqui e lá) não gostarão, mas aquelas são as minhas vivências, e é indiscutível, para quem me rodeia e me conhece, que sou uma mulher profundamente marcada pelo facto de ter nascido e vivido em Moçambique até ao início da adolescência. Sou isso. Essa personalidade de linha de fronteira que só pode sentir-se quase aquilo, e nunca o absoluto dessa substância. E talvez este livro tenha servido como catarse dessa impossibilidade de pertencer totalmente a um lugar, a uma pessoa, a uma só ideia, que me perseguiu desde então.
Ao escrever ao meu amigo com contactos africanos, disse-lhe algo como, "olha, vê lá se divulgas isto ao pessoal que conheces nas colónias". E escrevi-o com a maior naturalidade. Nada me pareceu incorrecto nesta frase. Enviei o emaile, e só o reli quando veio a resposta. Deparei-me com o vocábulo "colónias" e ainda pensei em enviar-lhe uma errata do género, "onde se lê colónias, deves ler ex-colónias". Mas depois pensei que não. Seria melhor não dar relevância ao assunto, podia ser que lhe tivesse passado. Até agora não se acusou.
Mas fiquei a pensar. Caramba, digam-me lá se isto não é uma alma colonizada até ao tutano? E não é por mal. Eu quero muito que as ex-colónias vivam cada vez melhor sem nós. Há neste desejo uma enorme sinceridade e muita emoção envolvida. Contudo, sinto um interesse pela realidade dos países que foram colónias portuguesas que não se compara com o que me suscita os que foram colónias de outros. Tenho muita pena, mas o que se passa no Quénia e na Zâmbia interessa-me menos. Não possuo uma ligação emocional com esses lugares. A minha alma não está colonizada por eles. Eu não fui deles e eles não foram meus. Mas entre mim e Moçambique não há volta a dar, colonizámo-nos mutuamente, para a vida, como amores antigos.

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