Frango assado com esparguete


Era o almoço de domingo. Frango assado com esparguete. A Mizé ia atirar o esparguete à parede. Ainda eram 10 da matina e já todas sabíamos. A Mizé, que comia na sala anexa, e cuja rebeldia a chefe de mesa não conseguia controlar, ia atirar o barro à parede.
Era uma novidade como outras. Novidade de colégio. De quem está encerrado. De quem não tem com que entreter o espírito. Por que é que elas não liam um livro, não faziam os trabalhos de casa, não davam explicações de Inglês à Luísa, com réguadas a sério, como eu fazia?!
Enfileirámos para almoçar no meio dum burburinho nervoso que as prefeitas não compreendiam. Estávamos com o diabo no corpo, diziam-nos. Eu nunca tinha o diabo no corpo, portanto não me servia a carapuça. Seguimos para o almoço, desejosas que servissem a sopa, e a retirassem, e que viesse o franguinho com o esparguete. Assistia a estas manifestações com uma superioridade curiosa. Queria ver o espectáculo, e, no entanto, lamentava que houvesse quem se prestasse a semelhante acto de rebeldia gratuita. Não gostavam, não comiam. E não gostavam porque eram finas. Coitadas. Se fossem filhas da minha mãe logo viam se não comiam. Se não gostavam.
As empregadas serviram o franguinho, e nada. A Mizé não tinha ousado. Ouvia risinhos na sala dela, mas nada fora do normal.
Foi na repetição. As senhoras da cozinha vieram de novo com os tabuleiros, começaram a repetir na minha sala. Já não havia pernas; só peitos. Esparguete, o que quiséssemos, e é nessa altura que a sala da Mizé rebenta em gargalhada. As meninas da minha mesa, e as das outras, levantaram-se e correram para a sala ao lado. Só as chefes permaneceram sentadas, deslocadas do ambiente geral. Umas queriam ir, também. Eu nunca iria. Eu não descia tão baixo. O espectáculo de uma miúda malcriada a atirar comida à parede...
A dona Perpétua chamou imediatamente a directora, enquanto o barulho progredia na sala e as empregadas pararam de servir. A directora interrompeu o próprio almoço, e entrou na sala de rompante. Silêncio profundo. Quando a dona Celene aparecia, havia uma solenidade, emendo, um medo! A dona Celene falava alto e grosso, embora tivesse uns olhos bons. Eu achava que tinha. A dona Celene ralhou especificamente com a Mizé, que mandou ir ter à sua sala no final do almoço, e deu um ralhete geral para as duas salas. Se não gostávamos da comida convinha lembrar que havia muita gente no mundo, e até em Portugal, que não tinha mais do que batatas. E batatas, com sorte. Comer só batatas?! Caramba, isso seria uma catástrofe. Mais valia o suicídio.
Eu, impassível. Sempre em ordem. Bata impecável. Lavada e penteada. Sentada na minha mesa como me competia. Estudiosa. Trabalhadora. Nada a apontar. Como é que elas se prestavam àquele sacrifício? E para quê? Eu não poderia dar esse desgosto aos meus pais nem aos meus professores. Não suportaria a decepção que sobre mim haveria de recair. Não queria chamar a atenção de ninguém. Só queria que me deixassem comer o meu esparguete em paz. O esparguete era delicioso. A meu ver não se atirava comida à parede. Não se era malcriado. Não se respondia aos mais velhos. Dizia-se "se faz favor" e "obrigada". A Mizé ia ser castigada. Quem, no seu perfeito juízo, oferecia o corpo ao castigo só para ser engraçada, para manifestar desagrado relativamente à comida? Então não seria melhor escrever uma carta à directora? Ou pedir para falar com o senhor Ilídio?
Não me passava pela cabeça que aquela era uma forma da Mizé se confirmar como líder para as outras. Era um ritual de acesso ao poder. Um poder transitório, efémero, mas o poder. Portanto, valia tudo.

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