Uma princesa na picada

Começamos muito cedo a ser nós. Por isso, sei o que estava a pensar neste momento. Aquela menina ainda cá está. O crescimento foi realizando o seu trabalho inevitável, mas eu, a forma como penso os meus pensamentos, como sinto o mundo, como tenho a consciência do que acabei de pensar e sentir, é a mesma. Por muito estranha que me pareça a figura daquele ser tão pequeno, tão louro e tão magro, partilhamos a mesma alma indivisível.
Não me lembro do local concreto onde tirámos esta foto, mas sei que era domingo. A minha mãe só me calçava sapatos de verniz ao domingo. Queriam tirar-me fotografias ao sol, e eu não conseguia enfrentá-lo. "Olha para cima! Não desvies a cara! Não feches os olhos! Levanta a cabeça, rapariga!" Não era uma sessão fotográfica, mas uma tortura. Tripla. Primeiro, a obrigação de enfrentar o sol, que continua a ser impossível. Segundo, o vestido de tule, um tecido duro, que armava, que me picava os braços e as pernas. Terceiro, os sapatos de verniz, fechados, com meias de lã. Por cima de tudo aquilo, um calor húmido na ordem dos 36 graus.
Por que me faziam aquilo? Porque eu era uma menina de bem, de boas famílias. Porque eles não tinham tido direito a tule, sapatos de verniz nem fotografias. Porque as fotografias serviam para se mostrar, e então que se mostrasse algo faustoso; uma princesa. Uma princesa na picada. Não existem por ali palácios nem jardins. É uma picada rodeada de mato. Um desvio. A estrada para a casa de algum machambeiro. E, no meio da picada, a princesa de tule. Julgo que os portugueses sentiram a pulsão de vestir África inteira de tule, e calçá-la com sapatos de verniz. E esse foi um dos erros. Aquilo era bom, mas era bom porque estava nu.
Aos domingos, oferecia-me ao sacrifício. Sabia que era temporário. Sabia que um dia seria adulta e haveria de me livrar deles, das fotografias. Quando fosse adulta ia estar sozinha na minha casa e ninguém entraria para me chatear, e só faria o que valesse a pena. Pensava isto exactamente como estou a escrevê-lo. A minha alma é ainda a mesma.

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