O rei está morto

Está sempre aqui. Insiste. Não sabe viver sem mim.
Agora temos a mesma idade. Já não somos família, mas dois adultos, cada um do seu lado, à espera.
Aposto que me olha sorrindo, com os olhos a brilhar, e pensa, "filha-da-mãe, és mais teimosa do que eu; não descansavas enquanto não ganhasses".
E eu rio-me. Ganhei, claro. Rio-me não por ter ganho, mas porque ele está aqui, e a sua presença pode ainda camuflar a solidão sem bandeira para onde o medo e o silêncio me atiraram.

Grande cabrão, levaste-a boa, mas ganhei eu, vês?! E tudo o que precisei foi estar quieta, esperar, persistir, esperar. Agora, se quiseres, já podemos beber um copo juntos. Enfrascarmo-nos, até, como velhos borrachos do teu tempo. Discutir política. O Salazarzinho, de novo. Pretendes voltar a explicar-me por que foi ele, no teu entendimento, o salvador da tua triste pátria? Não, não me aborreço nada. Fala à vontade. Não tenho medo nenhum. Repara, agora somos iguais; não tenho a obrigação de aparentar nada para teu orgulho. Posso rir-me na tua cara. Posso ser igualzinha a ti, sem vergonha, e provo-te num ápice que não conseguiste ver para além da tua pele. Que estavas errado. Oh, agora sabes. No essencial, meu caro, permaneceste fechado nas tuas conveniências e perdeste o grande quadro das realidades humanas. Para um homem inteligente, e mais, cristão, não foi lá grande currículo. Quem ama o próximo não selecciona a quem amar. Bem vês que tenho razão.
E agora estamos no mesmo barco e tu já não és o comandante. Não imaginavas nada, pois não? Admite que não estavas à espera deste xeque-mate. Que foi bem pensado.
Mas não foi pensado. Foi a ordem natural dos acontecimentos. Foi a tua herança.
Entretanto é tarde. Pousa o copo sobre o lava-louça e vamos dormir, porque sempre nos foi demasiado difícil levantar cedo.


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