Na machamba, longe

Sonhei que o meu pai tinha deixado escritas algumas informações sobre o segundo correlacionado de tempo e espaço que nesta foto se observa.
Vi a sua caligrafia perfeita, clara, legível, com um ou outro erro ortográfico ocasional, mas uma sintaxe perfeita. As linhas tortas. As habituais chavetas com apartes informativos, sobre segmentos das frases. Vi a mancha da tinta já esborratada pelo tempo.
Tinha ocupado todo o verso da foto com informação registada em caligrafia miúda.
Consegui ler as primeiras palavras, mas depois pensei, leio o resto mais tarde, quando precisar de escrever o poste. Lembro-me que na primeira frase ele tinha escrito, "Esta foto foi tirada na machamba do [não se percebia o nome] num domingo em que se matou um cabrito..."
Há pouco fui confirmar o verso da foto: não há coisa alguma escrita. É por isso que eu gosto de sonhar. Fartam-se de falar comigo.

E eis-me perante uma foto que contemplo com fascínio, mas sobre a qual nada sei.
Imagino que tenha sido tirada na machamba de um amigo que se estabelecera umas boas centenas de quilómetros acima de Lourenço Marques, algures no meio do mato. Tinha uma cantina ou vivia da agricultura, ou ambas. Seria lá para o Chibuto ou para Inharrime. Chegava-se por estradas de terra batida.
O machambeiro teria vindo das Caldas da Rainha. Os colonos juntavam-se frequentemente com os conterrâneos. Se não era das Caldas, é provável que fosse um conhecimento que o meu pai fizera em solteiro, quando, ao chegar a Lourenço Marques, foi viver para a pensão da Dona Pureza, paradouro de muitos colonos nessa situação. Costumava mostrar-ma ao longe, porque a minha mãe não achava piada a nada que remontasse ao tempo em que ela ainda não chegara. É que ele era putanheiro, que ela bem sabia, e andava com pretas para aqui e para ali. Tinham-lhe contado. E nisso ela não queria nem pensar! A pensão da Dona Pureza, esse tempo da vida do meu pai, era tudo para apagar.

A filha mais velha do machambeiro, se for quem eu penso, veio estudar para Lourenço Marques e ficou hospedada em nossa casa. Tenho uma ideia muito vaga de uma linda rapariga com longos cabelos castanhos, presos na cabeça com uma fita clara. Tinha olhos tristes e doces, e um irmãozinho tão mais novo que parecia seu filho.
Quando acabou os estudos regressou ao mato, nunca mais se ouviu falar dela, e eu não estranharia se por lá estivesse ainda. Os machambeiros e cantineiros isolados aguentaram-se melhor, após a independência, que os restantes colonos. Tinham criado uma rede de apoios, de trocas.

Reconstruo esta foto a partir do total vazio de memória: era domingo, o machambeiro tinha mandado os pretos, que não estão na foto, matar um cabrito e amanhã-lo. A mulher fez com ele um grande guisado à moda da terra de onde tinha vindo. O meu pai levara uns garrafões de pinga portuguesa, da boa, comprada na candonga ou fora dela.
Os homens sentaram-se na mesa dos homens. As mulheres, na mesa das mulheres. Eram todos pobres, e equilibravam-se sobre caixas de fruta e barricas de vinho e azeite, à falta de cadeiras. Eram pobres, mas viviam muito melhor que na Metrópole. Eram, como dizia o meu pai, remediados. Tinha um cuidado especial em lembrar-mo.
A comida abundava, bem como o trabalho. Falavam muito das suas terras, mas não queriam regressar. Estavam bem. Estavam felizes. Ao domingo pegavam nos carros e conduziam 400 quilómetros para Norte ou Oeste para ir almoçar num sítio que não conheciam, mas que devia ser lá longe, sempre em frente. E depois esse tempo acabou, de repente, como um relâmpago sobre a planície.

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