O homem português

Quando penso no homem português dos anos 70 vem-me sempre sempre à lembrança o ti Gusto. Tornou-se uma inevitável referência grotesca. Uma viagem ao Inferno de um Portugal provinciano, atrasado e mesquinho.

Em 1976, mais coisa, menos coisa, o ti Gusto mantinha uma fábrica de louça nas traseiras da casa. Fazia terrinas decorativas, em barro, decoradas com flores todas à volta, mas sobretudo na tampa e nas asas, tudo do mesmo material. As flores eram compostas à mão, pétala a pétala, e as impressões digitais de quem as trabalhava ficavam nelas gravadas para sempre. O ti Gusto empregava umas raparigas da minha idade, que lhe faziam o acabamento da louça, e ali aprendiam a compor as mais belas magnólias em barro, a pintá-las de cor-de-rosa e amarelo, as folhinhas a verde, a colá-las nas terrinas que tinham acabado de se desmoldar e depois iam a cozer e, de seguida, a vidrar. As terrinas eram feias e não serviam para nada, mas em Portugal, nos anos 70, tinham muita saída. Eram obrigatórias no lote das prendas de casamento, tal como a colcha de cama toda crochetada em branco ou cru, com rosetas complicadas de grumos e um grande rosário em madeira trabalhada que se pendurava na parede da cabeceira da cama.
As mulheres achavam que as terrinas eram arte, pelo que o tio Gusto e as suas meninas eram artistas. O ti Gusto talvez gostasse do barro, mas do que ele gostava mesmo, e disso não me restam dúvidas, era de ter ali nas traseiras, à sua disposição, um ramalhete de meninas com os peitos duros e fresquinhos, umas mimosas, de face rosada e pele branca. Uns vasos de leite ainda morno, acabado de ordenhar às vaquinhas da fazenda. Eram assim doces.

O inverno era de gelo. Cinza, chuva e lama. Os domingos à tarde afundavam-se em tristeza. O trabalho estava feito. Podia descansar-se, e o descanso pode ser pernicioso para quem não se habituou a gozá-lo. Na televisão a preto-e-branco passavam filmes do Tarzan. E a Heidi, mais ao final da tarde.
O ti Gusto engraçava comigo. Via-se logo que eu era uma boa menina, bem educada, trabalhadora, por isso o tio Gusto chamava-me para a fábrica, nas folgas, para me mostrar o mistério das terrinas. Botava o barro nos moldes, fechava-os. Depois, abria outros com a mesma peça já cozida. Dizia-me que me aceitava para aprender a arte, e poderia largar a escola, se quisesse. Sempre faria o meu dinheirinho, para ajudar os meus pais que, quando chegassem de África, não haveriam de ter com que mandar cantar um cego. E que eu saía à minha mãe, que tinha sido uma rapariga linda, em nova. Mas eu era ainda mais cheiínha.

O ti Gusto cheirava a suor e a vinho misturados. A roupa exalava um odor velho, ácido, pastoso. Uns fios de cabelo gordurosos caíam-lhe sobre a testa oleosa. A barba suja por fazer. A barriga empinava-se-lhe, e as fraldas das camisas de flanela saíam-lhe por baixo do pullover. Coçava os órgãos sexuais amiúde, com as mãos sujas de barro, e as nódoas da terra seca manchavam-lhe a braguilha como símbolo do seu pecado.
Eu não acreditava que não tentasse chegar-se às meninas que lhe faziam as flores. Não era uma suspeita infundada. Era certinho. O homem roçava-se em mim pelas estreitezas da fábrica. Sentia-lhe o sexo teso enquanto me desviava. O ti Gusto fechava a porta da fábrica quando para lá me levava aos domingos à tarde. Por causa do frio. E ia-se encostando. Pousava as manápulas grosseira no meu cabelo, agarrava-me o queixo, mexia-me no grosso dos braços e na cintura como se fosse meu mais dedicado protector.
Tinha um filho mongolóide. Tinha tido azar, coitado. Só um filho, e ainda por cima com aquela doença perversa. A ti Gusta usava uma bata de quadrados azuis, um lenço com flores e umas chanatas de cabedal preto. O mesmo durante o ano inteiro. Cozinhava sopas de couve com batata ou grão guisado com toucinho. Nunca falava. Sorria como um lobotomizado. Eram todos os três analfabetos, e tinham em casa, sempre fechada, uma sala com uma mobília de jantar em boa madeira, toda torneada. E sofás de pele falsa. Viviam na cozinha, sentados ao borralho; chegado o sono, atiravam-se para cima das camas e dormiam como cadáveres.
Toda a gente considerava o ti Gusto um homem muito bom, porque tendo um filho incapaz não o abandonara no asilo. Toda a gente tinha pena dele, porque a mulher não tivera barriga para lhe dar outro herdeiro. O ti Gusto era um poço de virtudes provincianas. Só eu sabia a verdade. Eu e as cabritinhas das terrinas. Nunca abordámos o assunto, mas parecia-me claro que o homem que me atirava contra a porta de zinco ondulado para me apalpar as mamas, esmagando-se contra mim, o faria a qualquer outra.
O homem não era apenas asqueroso e vicioso, mas limitado das ideias. Um pobre de espírito. Um animal que perdeu a inocência e se conspurcou com o lixo da matéria. Não creio que fosse possível estabelercer grande diferença entre o ti Gusto e os restantes homens da aldeia que desejavam meter as mãos pelos lugares quentes do meu corpo.

Mensagens populares