Sozinha

Sarah Beirão

Júlia era órfã, pobre, disciplinada e excelente aluna. Luís, rico, filho de médico, ele próprio estudante de Medicina, apaixonou-se por Júlia, desejando casar. Júlia não aceitou. Era necessário estudar, formar-se, triunfar pelo seu valor, sozinha. Depois, sim, depois casaria. Prometeu-lhe. Esta é a mais breve sinopse produzida sobre Sozinha, de Sarah Beirão, que li na infância, e que considero ter sido o meu primeiro livro a sério.
O meu agente não queria deixar-me incluir esta obra na lista dos meus 10 livros. Fiz finca-pé. Não faço listas de livros para parecer bem, ora essa, disse-lhe. O homem engoliu em seco.
Sozinha foi um livro sobremaneira importante para as mulheres da minha geração. Sarah Beirão escrevia sem quaisquer pretensões literárias, mas o interesse da sua obra está nas questões que levantava. O que ali podíamos ler, no início dos anos 70, e com o qual nos identificávamos, é que nós, mulheres, também tínhamos o direito a estudar, a ter uma profissão, e que isso era mais importante que o casamento, por uma questão de realização pessoal, mesmo que o casamento nos esperasse algures. E esperava, na maior parte dos casos.
Mais, que as meninas pobres, as filhas dos electricistas e dos canalizadores, e até as que não tinham ninguém no mundo, até essas, podiam progredir pela sua dedicação aos estudos. Ser gente, ser importantes no mundo, como os homens. Numa época na qual o destino das mulheres era o casamento e a maternidade, convenhamos que era uma mensagem deveras inovadora.
Tinha 8 ou 9 anos e um grande afecto por este livro, que requisitei mil vezes na biblioteca itinerante da Gulbenkian. A ideia da solidão... isto, é curioso... e penso agora... esta ideia da solidão, sobre a qual escrevia a propósito do Domingo à Tarde, de Nelson Ned, existia também nesta obra. Talvez eu perseguisse essa solidão desde muito nova. Eu também poderia estudar, ser professora, um dia, e chegar sozinha, pelos meus próprios meios, a um lugar digno, de cabeça bem erguida, sem vergonha. Ou talvez tivesse intuído que havia de vir um dia, não muito distante, em que me encontraria verdadeiramente só. Mais só que Júlia, talvez, e sem Luís algum. E talvez me preparasse para esse momento. Nunca saberei. Nunca chegamos a saber como acontecem tais coincidências nas nossas vidas.

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