Um homem absolutamente normal, melhor que muitos homens

O conjunto de textos que divulgo neste livro só existe porque eu ainda amo o meu pai, porque tenho saudades de tudo o que nele era bom, e era muito. Percebo que falo dele com orgulho e admiração, mesmo quando narro episódios complicados, agravados pela sua personalidade impositiva, indomável. Era um filho-da-mãe corajoso, aquele cabrão! Se acreditava em algo, acreditava, e fazia-o, e ninguém lhe tirava tal coisa da cabeça. Para o bem ou para o mal. Só a minha mãe o quebrava. A minha mãe tinha uma forma mansa de o quebrar. Ele ouvia-a. Rosnava, mas passava ao lado. Mais ninguém tinha esse poder.

O meu pai nasceu pobre. Foi criado com muita dificuldade pela minha avó, que lavou muitas escadas nas casas das senhoras das Caldas para lhe dar de comer e o mandar à escola. Fez a 4ª classe; na tropa tirou a especialidade de electricista e estudou até ao 2º ano, dizia ele com muito orgulho. Era um autodidacta. Tinha uma boa cultura geral, porque lia muito, e ia ao cinema. Era um homem curioso pela vida, profundamente satisfeito com essa dádiva, que inspirava, enchendo bem os pulmões da sua energia. Essa foi a sua herança. O meu pai não me deixou contas no banco, deixou-me muito mais do que isso: a sua vontade de viver, a capacidade para se expor sem medo, para resistir à adversidade, para saber esperar, para fazer o seu próprio regimento de vida, vivendo segundo as regras da sua consciência, desprezando estrondosamente as aparências. Deixou-me capacitada para viver sozinha, para viver do meu trabalho, para saber mudar. O meu pai deixou-me uma fortuna incalculável.

Deixou-me, também, os braços carregados de amor. Com essa certeza de que fomos amados, muito amados, e de que pudemos retribuir, apesar dos dias maus, apesar de tudo, porque afinal não há grande amores sem grandes desilusões. Nunca conheci nenhum caso, e a grande paixão que nos envolveu não é uma excepção.

Lembro-me muito do seu sorriso, que era muito verdadeiro, muito brilhante. Dos seus olhos vivos, que também riam. Da sua gargalhada. Estou-me a rir, também, porque visualizo o seu rosto querido. Para mim, era um homem muito bonito. Penso que tenha sido o homem mais bonito que já conheci. Era também profundamente dadivoso, e sensível. Chorava em certas partes dos livros e dos filmes. Comovia-se. Gostava de toda a gente. Não se protegia de ninguém. Tinha um sentido de humor imbatível e era uma pessoa que não passava despercebida. Animava sozinho uma festa. Protegia todos os animais. Quando eu trazia para casa cães ou gatos abandonados sabia que podia contar com ele. Ele intercederia a meu favor junto da minha mãe, e os animais ficariam.

Nem sequer posso dizer que o meu pai não gostasse dos negros. Gostava deles, sim. Como inferiores. Mas era uma atitude paternalista. Era algo como, eu posso civilizá-los. Eles podem aprender comigo, e depois também serão electricistas e montarão as suas próprias empresas e deixarão de viver nas palhotas... Era efectivamente uma atitude civilizadora, colonial. O meu pai nunca foi um homem mau, e a sua brutalidade não continha perversidade. A zanga passava-lhe muito rapidamente.

O meu pai foi um ser humano como os restantes seres humanos. Se a ocasião se proporcionasse, dava uma facada no matrimónio. Imagino que se tivesse dinheiro até pudesse manter uma amante com casa posta, como os outros. Uma amante com casa posta era a coisa mais comum nos anos sessenta. Ouvi muitas conversas de mulheres sobre o assunto.
Foi um português exactamente como os outros portugueses e um colono exactamente como os outros colonos. Não tinha nenhum comportamento especial, diferente. O meu pai não era o Kurtz de O Coração das Trevas, lamentavelmente - até poderia dar jeito a alguém que ele fosse assim, mas não era. Era racista como os outros que eram racistas, e eram muitos, eu diria quase todos, na Metrópole e no Ultramar. Tal como hoje. Conhecem muitos portugueses que não sejam racistas e xenófobos? Eu conheço poucos. Os portugueses de hoje sabem o que podem dizer em público, mas lá em casa, ao jantar, podem ser racistas à vontade, que ninguém está a ouvir. Podem malhar nos imigrantes brasileiros e de leste. Podem desejar a pena de morte para os gangues da Quinta da Princesa e o resta da pretalhada que por aí anda. O meu pai foi melhor do que esses.

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