Enganei-me


Vejo um documentário sobre Nuno Bragança que me foi oferecido por atentíssimo leitor presente no lançamento, na Livraria Pó dos Livros, em Lisboa.
Numa das cenas, a propósito de A Noite e o Riso, um amigo de Nuno Bragança, que me parece Pedro Tamen, opina que o livro é fundamentalmente autobiográfico, tal como a maior parte dos escritos do "Nuno". Um segundo amigo apressa-se a defender a obra, afirmando que não é bem assim, que as pessoas é que têm a mania de procurar autobiografia em tudo, mas que a obra do amigo é uma ficção que consiste na reelaboração da autobiografia. Percebo que teme desvirtuar o texto de Nuno Bragança ao remetê-lo para um contexto autobiográfico.

Assisti, sorrrindo, à mais esta exposição verbalizada do preconceito contra a autobiografia, que terá nascido algures pela teoria literária do século XX, com a ideia de que entre autor e compromisso íntimo, pessoal, com a respectiva obra vai uma distância igual à que separa a Torre dos Clérigos da Torre Eiffel.

Muito gostaria eu de me lembrar, agora, de grandes obras e autores que, não tendo sido autobiográficos, tenham feito as minhas delícias como leitora, mas é tarde, e só me ocorrem os nomes de Rousseau, Rimbaud, Isabelle Eberhardt, George Sand, Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Silvia Plath, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Doris Lessing, Truman Capote, Karen Blixen, Marie Darrieussecq, Paul Auster, Luis Pacheco, Lobo Antunes, Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa. Fernando Pessoa, Isabela?! Como podes ter o desplante de afirmar que o homem que escreveu «o poeta é um fingidor», e declarou ouvir os sinos da aldeia da sua infância, se entregava aos delírios emocionais da autobiografia? Digo, digo. Mas deve ser da hora. É do sono, juro.

Pobre parente, a autobiografia. Que incómoda! Que maldita! Eu cá, se tivesse alguma autobiografia a escrever, mudava nomes, personagens, localidades; o gato passava a coelho, do soco fazia-se uma joelhada, a tia passava a madrinha, a prisão perpétua reduzia-se para 20 anos sem liberdade condicional, e chamava-lhe... impiedosamente... ficção. Uma grande, uma bela ficção toda inventada do princípio ao fim, jamais acontecida, sendo que qualquer semelhança com a realidade não passaria de enorme coincidência à qual, eu, autora, seria absolutamente alheia.
O problema é que segundo esta linha de pensamento, o Caderno de Memórias Coloniais é todo ficção. Lamento. Enganei-me, o que é que querem?! Acontece a todos. Afinal é tudo ficção. Pronto, olhem, desculpem lá. Tábenzinho?

Mensagens populares