O lugarzinho

Entretanto fui despedida da fábrica. Uma injustiça, considerando que passei os últimos quatro anos usando uma nova técnica na fabricação de parafusos, motivada pelo engenheiro da nossa linha de produção. Um processo científico, que nunca foi posto em prática em lado nenhum, embora seja um mix de muitos. Não está provado que funcione melhor que o método tradicional, e, de facto, os parafusos até não saíram melhores, admito, para além de que se registaram inúmeras reclamações da clientela. Que os parafusos não agarravam. Que uma pessoa demorava muito mais tempo para construir qualquer insignificante estrutura. Que partiam facilmente.
O problema é que ninguém está disposto a inovar, a ousar. É o chamado corporativismo do parafuso à antiga portuguesa. Querem chegar à parede, atarraxar eficaz e rapidamente, montar a prateleira e toca a andar, como se não houvesse trâmites a cumprir. Eu tenho lido muito livro para aprender a fabricar parafusos. Tenho feito muita formação sobre a gestão do processo de fabricação dos mesmos. E o senhor engenheiro esteve sempre do meu lado. Isabela, força; Isabela, vamos insistir; Isabela, a gente é que sabe; os cães ladram e a caravana passa.
Não passou. O engenheiro viu-se obrigado a interromper o novo método de fabricação ou perdíamos a carteira de clientes para outros fornecedores. Muitos saíram irremediavelmente, nada a fazer. E o engenheiro despediu-me. Desculpe, lá, Isabela, não tenho outra saída... os clientes exigem. A Isabela, e respectiva equipa, terá de sair. Melhores tempos virão. Vou agora contratar uma operária que em tempos foi cá cliente. Primeiro tenho que os agarrar, e depois a gente vê, Isabela. Não desanime.
Não desanime é fácil de dizer. Ver toda a minha obra ser destruída por uma falinhas-mansas sorridente, que nada percebe do assunto e ali reside apenas para acalmar as hostes clientelares, não é pêra doce. Já observaram todo o vosso império em ruínas?! Pois é o que contemplo todos os dias. O meu império em ruínas.
Ontem, finalmente, percebi que um bom amigo nunca nos abandona. O senhor engenheiro telefonou-me logo de manhã. Então, Isabela, como vai isso?! Tenho boas notícias para si, minha fiel amiga: um lugarzinho. Já ouviu falar na Fundação Luso-Canadiana do Parafuso?! Não?! Oh, Isabela, é uma fundação, como a Gulbenkian, mas vocacionada para a indústria do parafuso. Precisam de um presidente e pensei logo em si. Não... problemas nenhuns, senhora... é nomeação directa! Tiro e queda. Fala Inglês, não fala?! Ah, bem, mas isso também se resolve. Um bom professor particular actualiza-a em duas semanas. Posso contar consigo? Porreiro!
Eis como me tornei presidente. Venham dizer-que que a vida não dá voltas.

Mensagens populares