De regresso

De regresso, 2010 [imagem obtida a partir de imagens vídeo visionadas em computador]

Há cerca de vinte anos fui aos estúdios da RTP, no Lumiar, participar em directo num programa de grande audiência, por mor do lançamento do meu primeiro livro. Lembro-me que a mãe do Pedro Rolo Duarte era produtora, e me recebeu com amabilidade e simpatia. Não recordo grande coisa da entrevista, e penso que só disse asneira. No regresso, caminhei sob a chuva até uma paragem de autocarro no Campo Grande, junto aos edifícios da actual Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Eram umas oito e tal da noite. Muito povo na paragem: os autocarros não apareciam para levar de regresso a casa quem tinha trabalhado todo o dia. Veio um 44 ou um 45, cheio, que encheu mais. Entrámos todos no primeiro. Íamos esmagados uns contra os outros; as nossas roupas e chapéus encharcados, encharcavam aqueles a quem nos encostávamos; o cheiro suado dos corpos e do cansaço agoniava as nossas narinas. Queríamos sair no Rossio, no Terreiro do Paço ou no Cais do Sodré e seguir em paz para o nosso subúrbio.

Saí no Cais do Sodré. Apanhei o Cacilheiro. Estava tão bonita. Tinham-me maquilhado antes da emissão, e estaria bonita mesmo que não o tivessem feito. Estive quase a escrever que tenho saudades dessa beleza. Mas não, não tenho. Era uma beleza perfeita, inocente, que precisava de se estragar para me deixar compreender umas tantas coisas. Não posso ter vergonha do que sou. Construí-me. Foram as minhas mãos. Respondo por elas.

Em Cacilhas tomei o autocarro para casa. Ia cheio. Os transportes iam sempre cheios. Lembro-me muito bem dessa viagem de regresso. Não da de ida, nem do programa. Lembro-me, porque guardava um sentimento de alegria e de vazio, simultâneos. Era importante ir à televisão, ser entrevistada. Contudo, tinha ido sozinha, voltava sozinha, e não tinha com quem partilhar essa emoção. Não podia dizer, "viste o apresentador?!" Não podia perguntar, "achas que me atrapalhei muito?" Não, nada. A mesma solidão de sempre. A mesma unicidade. Eu, sozinha, desde o princípio dos tempos. Dos meus tempos.

Na sexta passada, ao regressar dos estúdios da TVI senti exactamente o mesmo. Chovia. Mal via as indicações de direcção. Enganei-me no caminho de regresso.
Queria dizer, "viste a Marisa Cruz na maquilhagem?! Tão bonita, não é?! Mesmo sem pintura. E o Henrique Garcia?! Parece mais alto na televisão, não parece?! A pivot era simpática, não achaste? Parece-te que estive bem? Achas que disse as coisas certas? Reparaste que dei um erro de concordância? Que vergonha!" Queria dizer, mas não disse. Não havia um tu. O meu tu sou sempre eu. E lembrei-me, então, dessa outra noite de há 20 anos atrás. A mesma unicidade, mas com meio de transporte próprio, a pele mais velha, e mais cicatrizes. Vinte anos depois, tudo igual quanto ao essencial.

Para me distrair liguei o rádio do carro. Ouvi o Marco Paulo cantar o seu último êxito. Pensei que ninguém canta, em Portugal, com o vozeirão do Marco Paulo. Que é uma pena estragar-se com letras e composições excessivamente românticas, pejadas de lugares comuns, péssimas rimas... Senti uma ternura enorme pelo Marco Paulo, quase uma vontade de o abraçar. Ri-me. O Marco Paulo! Vai toda a gente gozar comigo. Ou não. Tenho 47 anos. Aos 47 anos já me é concedido o direito de sentir ternura pelo Marco Paulo e, sobretudo, de dizer e escrever o que me der na gana. Aos 47 anos já mereço algum respeitinho.

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