A expressão bem clara da divisão de classes

Excerto de um email enviado por Fontenova, a propósito da divisão de classes "na Metrópole".

"Quando eu era miúdo, na década de sessenta, na vila alentejana onde vivi e estudei, havia, como sempre há, um café principal, frequentado por quase toda a gente.
Entrava-se na sala enorme, e do lado direito havia mesas e cadeiras confortáveis, até algo luxuosas, e do lado esquerdo mesas e cadeiras banais.
As pessoas de maior prestigio ou riqueza, quase exclusivamente homens (médicos, bancários, professores, latifundiários, funcionários públicos de relevo), ocupavam sempre as mesas do lado vip e o povo indiferenciado as mesas do lado esquerdo.
A divisão de classes tinha ali uma expressão bem clara e as pessoas ordenavam-se rigorosamente de acordo com o lado a que achavam pertencer. Ninguém os obrigava. Obedeciam ao seu polícia interior.
Julgo que isto era assim em muitas terras.
Na cidade para onde vim depois estudar, o café principal tinha mesmo duas salas, ligadas por uma porta/arco. A sala vip e a do povo comum, paralelas e com saídas separadas para a rua. Ainda se mantém assim, mas a circulação de pessoas por ambas as salas é agora perfeitamente indiferenciada.
E duas sociedades recreativas, na mesma rua, em frente uma à outra: o "clube dos ricos" e o "clube dos pobres".

O 25 de Abril, entre muitas outras coisas, acabou com estas tradições. Ainda bem. Mas o período revolucionário originou no Alentejo interior, que conheci muito bem na minha adolescência, uma divisão mais dramática e mais perigosa - a divisão entre comunistas e socialistas (designação genérica para os não comunistas). Certos cafés e tabernas passaram a ser ou preferencialmente frequentados por comunistas ou por socialistas.
Mas essa era apenas uma face visível de uma divisão mais funda, que afastou vizinhos e até famílias. Gerou-se um fundamentalismo nas duas visões de mundo, que fez dessa clivagem uma fonte de desconfianças e mesmo de ódios difíceis de compreender hoje, mas que na altura levaram frequentemente à beira da violência cega.
Desse calor das emoções, da política à flor da pele, pouco ou nada ficou. Hoje reina, no Alentejo como noutras partes, um certo desencanto com o país e o seu futuro. Apesar de todo o imenso progresso que se viveu nas últimas décadas - fruto, a meu ver, sobretudo do gigantesco salto científico e tecnológico, mais do que da sabedoria dos governantes - os portugueses sentem que não se fez o suficiente para nos podermos orgulhar enquanto país moderno, civilizado e justo que desejamos ser."

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