Família e autobiografia

Maria Archer


Estando eu, recentemente, a almoçar com a matriarca da família Garruncho, ocorreu-me dizer, na brincadeira, "o meu próximo livro vai chamar-se Caderno de Memórias dos Garrunchos". A matriarca Garruncho engasgou-se, entalou o pastel de bacalhau no gorgomilo, e, ao conseguir articular palavra, ameaçou-me, "Isabelinha, Isabelinha..."
As pessoas começaram a temer os movimentos que os meus dedos podem executar sobre um teclado de computador.
Ter um artista na família é aborrecido, mas um escritor chama-se azar! Artistas plásticos e músicos movem-se num registo não verbal simbólico, mas os escritores disfarçam pior, para além de que têm quase todos uma apetência formidável para carregar a família com os males do mundo.
Não conheço muitas autobiografias nas quais não se arrase a família próxima. No mínimo, ficará parcialmente amolgada. As famílias são constituídas por pessoas, e as pessoas nunca foram garantia de coerência e bons costumes. Parece-me muito normal que as crianças não compreendam a distância que separa as regras que lhes são exigidas das práticas que testemunham aos que lhes exigem tais comportamentos. Surpreendo-me sempre quando vejo alguém sobreviver à infãncia sem traços de esquizofrenia, bipolaridade, psicose, obsessão compulsiva ou qualquer outro palavrão técnico desta ordem. No mínimo, exige-se uma insoniazinha, uma dependência, um tique nervoso...
Quando Maria Archer escreveu Aristocratas, em 1945, romance autobiográfico, a família reconheceu-se, não gostou e expurgou-a rapidamente. Para dizer mal do que representavam já lá tinham a criadagem.
Eu, graças a Deus, na minha família, não tenho ninguém com hábitos de escrita. Posso assim poupar-me ao desgosto de me ver retratada da pior forma possível.

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