Nós éramos do Alto-Maé

Avenida Pinheiro Chagas, ao Alto Maé (Lourenço Marques)

Ontem à noite.

- Então, como é que correu o lançamento, menina? Não me dizes?!
- Correu bem. Estava muita gente.
- Muita gente que leu o teu livro?
- Sim. E muita gente que esteve em Moçambique ou noutras colónias.
- Ah... E gostaram do livro?
- Acho que sim. Falaram muito sobre as suas experiências em África. Na guerra contra os terroristas, no que aconteceu a seguir ao 25 de Abril e à Independência, na vida que por lá se tinha. As pessoas querem muito falar sobre isso.
- Engraçado...
- Por exemplo, falou-se na forma como a Avenida Pinheiro Chagas estava dividida: do nosso lado era gente mais pobre, havia mais mistura de raças; do lado onde morava o padrinho, para lá do hospital, era gente com mais posses. Tu sabias disso?
- Sabia.
- Tinhas consciência disso, lá?
- Tinha. Havia essa diferença, havia. Quando tu nasceste morávamos no prédio Valente, e no prédio Valente havia uma grande mistura. Era a renda que o teu pai podia pagar na altura. Havia gente vinda de todo o lado, mas davamo-nos todos bem, como se fosse uma aldeia. Não te lembras da Cilinha, mas era uma vizinha mulata, muito bonita, que gostava muito do teu pai - tu sabes que o teu pai as fazia rir, era muito divertido, e elas andavam sempre de volta dele. A Cilinha adorava-te, e tu a ela. Andava sempre contigo ao colo. Eras uma bebé muito bonita e todas as raparigas do prédio queriam trazer-te ao colo. Às vezes nem querias vir para casa. Teimavas que havias de ficar em casa dos vizinhos.
- Mas nunca me contaste isso. Essa diferença que havia entre os dois lados da Pinheiro Chagas.
- Mas ia contar-te isso para quê, rapariga?
- Eu gosto que me contem essas coisas, e nunca me tinha apercebido muito bem da distinção entre brancos de um lado e brancos do outro.
- Então, era como na Metrópole!
- Mas eu não sabia como era na Metrópole!
- Calculava lá eu que tivesses interesse nisso!
- Tenho.
- Quando ias passear com o teu pai para a Polana, aos sábados à tarde, ias sempre bem vestida e penteada. Eu nunca te deixei ir de calções e chinelos para a Polana.
- Pensei que era por ser sábado à tarde, não porque era a Polana, embora tivesse a noção que era zona de casas ricas. Nem me lembro muito bem da Polana, para te dizer a verdade.
- Não te lembras da Polana?! Então, era onde íamos dar o passeio dos tristes, ao domingo à tarde.
- Lembro-me bem é do Alto-Maé. Do cinema Infante. Da esquina dos SMAE. Da papelaria que ficava por debaixo do prédio Valente. Da casa de frescos que era do china. De uma cigana que passava junto ao Jardim 28 de Maio e que tu tinhas medo que me roubasse... Nós éramos do Alto-Maé.
- Nós não éramos do Alto-Maé. Vivemos foi uns bons anos por lá. Antes de nasceres tivemos uma casa na Malhangalene.
- Da Malhangalene não me lembro.
- E da Matola?
- Oh, mãe, achas que podia esquecer-me da Matola?!
- Aquela casa custou tanto a fazer ao teu pai! Ficou lá tudo...

Mensagens populares