A bondade dos táxis

Levaram-me para a enfermaria de mulheres agarrada à barriga, às dores e aos suores frios. Pensava, nunca mais me meto nisto. Não aguento, paciência. Acabou-se. O útero ardia-me. Queimavam-mo com alguma coisa introduzida na confusão das sondas e exames. Acabou-se, acabou-se, repetia entre grossas lágrimas. E o outro lado do meu cérebro ripostava, como podes desistir?! Como podes esquecer o naco quente de amor que tanto desejas?! Então és das que desistem, das que não aguentam?! És fraca. Se não fosses fraca o teu corpo resistiria. O teu corpo que não vale nada, ao fim e ao cabo, que nem um filho segura na barriga. Amputada, o que vales tu, raio de mulher?!
Uma dúzia de horas após a minha entrada na urgência, tinham decidido tirar-me do corredor e mandar-me para uma cama na enfermaria, onde esperaria que o colo do útero dilatasse a ponto de expulsar sozinho o feto inviável, sem intervenção cirúrgica. Teria contracções durante a noite, como se me preparasse para parir, e de manhã o trabalho estaria naturalmente feito: um parto de postas de sangue, eu já sabia. Já não era o primeiro. Mas nunca foi assim, porque o meu corpo bastardo é muito agarrado à carne de que é feito.

Na enfermaria, duas velhotas esperavam ser histerectomizadas no dia seguinte. Conversavam animadamente sobre a felicidade de terem sido finalmente chamadas para irurgia. As miudezas só lhes davam trabalho.
Permanecia calada. Ouvia-as. Chorava. O lado bom e o lado mau do meu cérebro lutavam sem tréguas.

As senhoras queriam meter conversa, aproveitando a minha mudança de posição, com dores, para me perguntarem o que fazia ali uma mulher tão nova. Alguma laqueação de trompas?! Que ironia! Que vontade de rir me dava tudo aquilo, ao mesmo tempo. Contei-lhes. Não, um aborto espontâneo. O segundo em ano e meio. E a da ponta exclamou, com muita convicção, não volte a tentar. Já não tem idade para isso. Desista. Adopte. Há para aí tanta criança a precisar de pais.
Tentei afastar as suas palavras. Esquecê-las logo. Quem a mandou falar? Se pudesse ter evitado essa voz sibilina nos meus ouvidos. Não queria ouvir. Não havia alguém que me dissesse, tente outra vez, tente as vezes que forem necessárias. Tente, vai conseguir. A sua mãe não foi também assim? Tente, tente, tente.
Não diga essas coisas, ralhou a senhora da cama do meio com a da ponta. Já está nos 40, mas há muitas mulheres que têm filhos nessa idade. Ainda pode ter. Não desanime. E agradeci-lhe, de viva voz, mas sobretudo com o meu coração ferido. E a outra, céptica, insistindo, têm aos 40, mas não o primeiro. Quantas mulheres têm o primeiro filho aos… que idade é que a senhora tem? … aos 44? Pouquíssimas. E depois, há o problema das doenças. Nunca se sabe. Oh, minha senhora, faça o que lhe digo, desista.
Como é que se calava aquela velha bruxa cuja voz perfurava o lado mau do meu cérebro, que lhe dava razão?

As dores das contracções interromperam o diálogo.

No dia seguinte, às nove da matina, regresso ao corredor da urgência; o feto não saíra; era preciso proceder a uma raspagem. Raspá-lo à faca, rasp, rasp, repito.
Chegada a noite, trinta horas após a minha entrada, e a maior parte delas passadas numa maca no corredor, ouvindo mulheres entrar, gritando, para parir em vinte minutos, alguém teve pena de mim, injectou-me um calmante, mandou-me abrir as pernas e disse-me, vai sentir um bocado, mas é rápido. Não me dão anestesia, perguntei. Da outra vez deram-me. Não, o que lhe injectámos vai torná-la sonolenta. Vamos a isto. E foi. Senti tudo, mas ligeiramente amortecido. Devem ter-me injectado esponja nas veias. E repetia as palavras que me haviam dito, como uma oração, "mas é rápido, mas é rápido, mas é rápido". Não sei se foi. Depois disseram-me, agora vista-se, nós chamamos o seu marido e vai para casa. Não tenho marido. Então chamamos quem? Pode ser uma prima minha. Não sei, se calhar é melhor não, que está na hora da novela. Chamem-me um táxi, por favor.


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