Encontro com o meu agente

Tal como combinado há uma semana atrás, encontrei-me ontem com o senhor Simões no Starbucks do Almada Fórum. Tem o escritório emprestado a uma brasileira de Curitiba que cá está a investigar a obra de José Luís Peixoto.

- Mas de onde é que conhece essa Serena Thaís, senhor Simões?

- Através de umas poetisas brasileiras que cá estiveram o ano passado a ver como é que eu as podia representar, coisa e tal. Poetisas, não, desculpe, poetas, que vocês agora são muito sensíveis à terminologia (ri, gozando). Ainda fui com elas ao Gerês. Boas raparigas (ri outra vez).

- (Insisto na inoportunidade do empréstimo) Mas por que é que não lhes indica uma pensão, ou uma casa a partilhar? Como é que pode trabalhar? Tem tudo lá, ou não?

- (Chegando o rosto ao meu, e falando baixo, por uma questão de intensidade.) Se a Isabela fosse ao Brasil fazer investigação não gostaria que alguém a amparasse?

- Depende. Se me ajudassem quanto ao essencial, e de resto me deixassem em paz para trabalhar... Não acho isso bem: andar a passeá-las. Não vêm para investigar? Investiguem. A Biblioteca Nacional abre das 9 às 19 horas. No Starbucks é que não... o escritório é fundamental.

- (Conciliando.) Não seja assim. A Serena precisava do computador do escritório. E tem sempre uma chávena de bom café preparada para mim. Excelente rapariga, e...

- Não quero saber! Sinceramente, senhor Simões, poupe-me aos detalhes. Trabalhemos.

- Ok, ok, trabalhemos… Mas, já agora, deixe-me dizer-lhe: a menina sai pouco. Não é bom estar sempre fechada com as cadelas; não aproveita a vida. Depois, claro está, não tem conhecimentos e não compreende quem os tenha. E censura. Devia arranjar um namorado. Olhe, tenho um amigo meu, divorciado...

- Não é nada disso, senhor Simões. Desculpe lá. Avancemos, avancemos. Não me faça falar...

- Bom, a coisa está neste pé: neste momento a menina precisa de pensar em consolidar a sua carreira. O que vai escrever a seguir é de suma importância. Conhece o sindroma Dinis Machado? Pois bem, isso é a última coisa que quero que lhe aconteça. Tem de escrever todos os dias, quanto mais melhor. E ler que nem uma maluca.

- Eu já leio que nem uma maluca e escrevo todos os dias. Quero é saber o que pensa do que tem lido no blogue.

- Oh, filha, a menina dispersa-se como a água em queda nas cascatas do Niágara. Um dia, são vestidos; no outro, pão com queijo. Não pode ser (tom paternalista).

- (Começando a ficar irritada) É o meu estilo. Detesto monotonia. Detesto fazer todos os dias a mesma coisa. Preciso de variar.

- Mas deixe-me dizer-lhe que não é assim que escreve o Saramago, o Lobo Antunes, a Agustina, o Gonçalo Tavares e toda a gente que interessa. Eles encontram o filão, fixam-se nele durante dias a fio e não o largam.

- Mas eu sou diferente. Portanto, esqueça isso.

- Afinal que história é aquela dos comboios, da Roménia?

- É uma viagem que fiz em 1994, e que se veio a revelar muito difícil por várias razões.

- Mas a quem é que isso interessa? Quem é que lhe vai comprar um livro sobre uma viagem que correu mal? Quem é que não fez viagens dessas? E sobre romenos! Olha, sobre romenos! O pessoal começa logo a pensar naqueles indigentes infectos que nos lavam os vidros do carro, à força, nos semáforos da Avenida das Forças Armadas.

Não lhe respondi.

- Isabela, vamos lá ver se nos entendemos. A menina contratou-me para lhe indicar o caminho, para a orientar quando estivesse a descarrilar; pois eu digo-lhe já que esse texto dos comboios vai ser um descarrilamento com mortos e feridos. Vai ser pior que Alcafache. Não me disse que precisa de dinheiro para operar os olhos e o estômago e fazer doações para uma ONG qualquer?! Quem é que quer saber seja o que for de romenos, Isabela?

- (Com calma, com tristeza.) O dinheiro não é tudo, sr. Simões. Se um livro estiver bem escrito, mesmo que não venda, não perde valor.

- Ah, o que eu gostava de a ouvir dizer isso ao seu editor. Sim, sim, a menina chegue lá acima e diga-lhe, com esse seu arzinho de professora do liceu, senhor doutor, isto está lindamente escrito, mas é capaz de não vender nem a badana, porque o assunto não interessa ao Menino Jesus. Isabela, para a idade que tem, eu esperaria que fosse menos ingénua, menos idealista, menos romântica!

- Se quiser, digo-lhe eu. Qual é o problema?!

- Não diz nada. Essa não é a sua tarefa. Aqui, quem fala com o seu editor sou eu. Cabe-me discutir com ele a natureza e condições da publicação. As coisas não são como pensa. Há procedimentos.

- Não queria dizer isto, mas seja: ao contratá-lo, senhor Simões, esperava de si uma outra sensibilidade. O senhor vê-me apenas como um produto a vender. Exactamente por isso não sei se é o agente ideal para me acompanhar e representar. A minha editora tem créditos firmados. É pequena, mas credível. Não entra lá qualquer um. E o senhor fala comigo como se eu fosse uma gaja qualquer, que não sou. Não é essa a imagem que passa de mim nas reuniões com o meu editor, espero.

- A Isabela não se preocupe com isso. Sei o que faço. (Tornando-se mais eloquente.) Eu estou habituado a lidar com essa gente da universidade! Muita conversa, muita filosofia, muita história, muita literatura, mas eles gostam é de uma boa anedota acompanhada de uma imperial com tremoços e fotos de miúdas em soutien. Fazem intervalos na leitura do Derridas para visitarem o blogue do Miguel Marujo. Eu dou-lhes a volta com uma pinta...

- Não sei...

- Isabela, a menina pense num romance.

- Um romance?! Está maluco. Eu não quero escrever nenhum romance.

- Oh, filha, se quiser escreva-o na primeira pessoa, como a menina gosta.

- Por favor…

- Já leu o Bolaño?

- Não.

- Tem de ler. Aquilo é um tratado de escrita criativa. Digo-lhe como pode fazer. Imagine um saco cheio de notas de euro. Tem uma acção central, que é o saco cheio de dinheiro, mas depois vai separando as notas por valores. Para um lado, as de 5 euros; para outro, as de 10; e as de 20, 50, 100, 500. Cada molho de notas é um núcleo secundário da acção. Tira uma nota do molho de 5 e outra do de 500, e essas devem permanecer na narrativa até ao final. Tipo, o fio condutor, o espírito da coisa, os mestres daquilo. Às restantes, dos diversos núcleos, faz o que quiser. Amantize-as. Indisponha-as umas com as outras. Mande-as para o estrangeiro…

- Senhor Simões, não estou interessada em escrever argumentos para telenovela...

- Lá está você. Olhe, Os Maias, outro bom exemplo de romance. Já leu Os Maias?

- (Pior que estragada, quase gritando.) Senhor Simões, por favor, eu sou professora de Português!

- (Olhando para o lado enquanto fala.) É professora, mas eu sei lá o que é que vocês aprendem agora na faculdade. Trabalhinhos... (Parecendo defender-se.) E a menina licenciou-se na Nova: um ninho de cursos surrealistas com pedagogias pós-modernas. No meu tempo, menina, na vetusta Universidade de Lisboa, isso é que era! Exames a sério, e orais. O professor David Mourão Ferreira... um excelente catedrático! Uma pessoa saía dali com uma formação… as raparigas, então, querendo, tinham aulas extra... iam ouvi-lo ler os seus poemas, e de outros.

- Mas o senhor não acabou o curso em 1974, e não passaram nesse ano todos com 6 ou 7 ou lá o que foi? Uma rebaldaria que não lembra ao diabo?!

- ... mais ou menos. As pessoas exageram nessa história. Quanto ao romance, falamos depois. Também a posso pôr em contacto com o Bruno Sena Martins, que percebe disso… é só querer.

- Faça o favor de não me pôr em contacto com ninguém...

- Vá escrevendo, menina; vá escrevendo que depois logo vemos como arrumar o caos que produz. Agora, desculpe, mas tenho de ir. A Serena prometeu que me massajava a coluna lombar com uns óleos de uma planta aquática do Amazonas, e que me fazia uma reza a Iemanjá... Sabe lá o estado em que tenho a coluna! Deixe cá espreitar se há bicha na ponte... Caraças, tenho mesmo que ir andando!

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