A mamã pagou a preservação das minhas células estaminais, e a tua?


A descoberta das células estaminais, e respectivas potencialidades, foi uma descoberta científica notável. Recolhidas no momento do parto, a partir do sangue do cordão umbilical, têm o poder de se transformar em qualquer outro tipo de células ou tecidos, e curar eventuais cancros, avc's, linfomas, um número quase infinito de doenças. Se neste momento se realizasse a criopreservação das células estaminais de cada nado-vivo, num futuro muito próximo tornar-se-ia possível curar toda a gente de quase tudo e, na prática, erradicar doenças e sofrimento.
Em Portugal é possível preservar as células estaminais de um bebé, durante 20 anos, por um preço que varia entre os 1200 e os 1400 euros, a pagar num máximo de duas prestações. O laboratório de criopreservação, que poderá situar-se numa zona industrial, num espaço pouco maior do que a minha casa, envia aos futuros pais, subscritores do serviço, um kit a entregar aos médicos responsáveis pelo parto, para que seja possível fazer a recolha das células. Os próprios pais reenviam o kit para o laboratório, através de um serviço de transporte cujo número de telefone lhes é fornecido. Os subscritores do serviço nunca chegam a deslocar-se até ao local onde as células são preservadas, recebendo um relatório sobre o estado das mesmas a cada cinco anos.
Se eu estivesse para ser mãe biológica, empenhar-me-ia no sentido de conseguir para o meu filho tal garantia de saúde. Se me falhassem as poupanças, poderia contrair um empréstimo a uma empresa de consumo, pelos seguintes prazos e valores:


Eu poderia fazê-lo, mas não sei se as mães que sobrevivem com ordenados mínimos, contando tostões para conseguir comer até ao final do mês, teriam capacidade para pagar este empréstimo.
Já se sabia que para garantir melhores cuidados de saúde convinha ter melhores rendimentos, mas esta situação cria uma desigualdade no momento do nascimento. Não nascemos iguais, de facto. Hoje, na Maternidade Alfredo da Costa, nasceu uma minoria de crianças que terá direito a um futuro mais saudável do que a maioria, porque alguém pagou a criopreservação das suas células estaminais. Mas isto não é apenas uma questão de finanças. Muitas das parturientes nunca ouviram falar numa célula estaminal, não sabem o que é nem para que serve, de maneira que mesmo que lhes tivesse saído o Totoloto...
Este problema subsistirá com os progressos da ciência. Dentro de alguns anos a nanotecnologia estará em condições de estabelecer interfaces entre organismos humanos e não humanos, fazendo crescer ossos e tecidos; são notícias perturbadoras e desejáveis, contudo estes benefícios não chegarão a todos, mas apenas aos que puderem pagá-los, e aos que detiverem o conhecimento, pelo que os cenários de discriminação no acesso à excelência, apresentados pela ficção científica, e muito bem explicados em Gattaca, se tornaram já verosímeis. A discriminação, no futuro, estará também relacionada com o nível de excelente saúde que cada um poderá alcançar.


Fotograma de Gattaca [Niccol, 1997]

Claro que gostaria de perceber por que motivo o Estado não cria os seus próprios laboratórios de criopreservação. Um sistema de saúde, como o nosso, ameaçado pelos custos exorbitantes dos cuidados de saúde com doenças crónicas e terminais não estaria interessado em poupar para daqui a 20 anos? Por que motivo não têm direito à preservação das células estaminais todas as crianças que nascem? Não será esta protecção uma obrigação dos estados? Que me interessa a mim uma nova ponte, um novo aeroporto, um TGV se nem a ciência serve a todos por igual.

Nota: uma leitora atenta, a quem muito agradeço, acabou de me escrever informando que, afinal, existe em Portugal um Banco Público de Células Estaminais do Cordão Umbilical, gratuito, para serviço de todos. É uma boa notícia. Mais informação, aqui.

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