O cão do preto era branco II

Menina com cão (autor desconhecido)

O preto do cão branco. Eu conhecia essas conversas. Imagino-as. O meu pai perguntava-lhe notícias do bairro. Quando iam alcatroar a estrada, quem ia morar para o talhão G, como ia a vida, se queria um garrafão de vinho do bom, da Metrópole. E o negro do cão branco, naturalmente, respondia que sim, e falava da vida, do trabalho, dos filhos, das mulheres, das bebedeiras, do cão que queria estar sempre em nossa casa.

O cão tinha o pêlo hirto e passava fome. Pirata, Pirata… estás aí, amigo? Olha a menina das tranças louras, com pernas magrinhas, a que te dá os ossos e a farinha com carne? É bom, não é? Ficavas saciado e eu sentia-me tão completa por te ter saciado! O teu dono não te dava comida, apenas liberdade e porrada. E eu não gosto de agressores de fracos, que são quase todos.

Conferenciava com os meus pais uma possível transição do Pirata para nossa casa, mas o meu pai dizia não, não, e a minha mãe exaltava-se, nem penses em tal coisa, rapariga. Isso era comprar guerra aos negros. Era escarrapachar-lhes na cara que não sabem tomar conta do cão, que nem responsabilidade para isso têm, e nós não estamos aqui para arranjar problemas, ouviste? Os tempos não vão bons. És maluca, rapariga.
Assim, o Pirata ia transitando entre portões perante a permissividade do dono negro. O Pirata, e o meu pai, dedicado à troca de favores. O que recebíamos dos negros? Amendoim. Batata-doce. Espigas de milho. Aguardente de caju, uma vez por outra. Gado vivo para matar, que horror. Retribuíamos com panelas de belos cozinhados de carne feitos pela minha mãe: arroz de cabidela, coelho guisado… até lhes caíam os dentes, exclamava o meu pai. Se calhar já nem os tinham, penso eu.
Mas permito-me avançar. O meu pai gostava do preto. Gostava, porque eu conhecia bem aquele electricista, e sabia que quando descia da carrinha e se encaminhava para casa do vizinho, ia com vontade de falar, beber, gracejar. Viver a vida, esse sacrilégio que a minha mãe compreendia tão mal. O meu pai queria rir, falar sem cerimónias, com a camisa fora das calças, como um preto, qualquer dia pareces um preto, dizia-lhe a minha mãe. O que é que isso lhe interessava?! E o preto devia apreciar o meu pai. A naturalidade do meu pai. A atenção que lhe dedicava, bebendo juntos quase como iguais. A risada larga do branco. Como a sua. A autenticidade profunda do meu pai, uma extravagância, ser-se verdadeiro, ser-se como é, dizer-se o que se pensa. E se o eu pai fosse também meio negro?! Ai, se ele tivesse sabido! Se tivesse... percebido!

E quando se deu o 7 de Setembro, e nos escondemos no corredor da casa, para nos protegermos dos vidros partidos, de pedras que atirassem, de coqueteiles molotofe, da morte muito certa, sabíamos lá nós que morte, mas indigna, gratuita, raivosa, foi o preto do cão branco…. a minha mãe dizia que tinha sido Nossa Senhora, que Nossa Senhora nos salvara, mais as suas orações. Eu acredito muito nas orações da minha mãe, sempre acreditei. Mas, não, daquela vez foi o preto que desviou da nossa casa os amotinados. Foi ele que disse, aqueles brancos, não. Naqueles não tocam. Não sei que outro papel poderá ter tido nesses acontecimentos, mas quase garanto, embora não lhe conheça o nome, que lhe devemos as vidas. A não ser que o Santo Padre Cruz tenha descido sobre o coração dos sedentos de sangue e lhos tenha amolecido ao olharem para a casa, a minha casa da Matola, mas continua a parecer-me pouco provável.

Mensagens populares