Ofereceu-me um filho

Começou numa noite de Janeiro ou Fevereiro, aí pelas três da manhã.
O meu quarto encheu-se de uma luz azulada que pensei vir da televisão por desligar. O clarão acordou-me; pus os óculos, assarapantada com tanto néon, e vislumbrei um anjo muito bonito, com as devidas asas brancas e o rosto do Mark Ruffalo, tudo filtrado a azul.
Eu sabia que o Mark Ruffalo era um anjo, foi o meu primeiro pensamento. Tinha lógica que fosse, porque quando o vejo nas fotos e nos filmes sinto-me sempre atravessada por um torpor beato. E ele disse-me, falando baixo, grave, rouco, com a voz arrastada que se lhe conhece, tudo em Inglês com sotaque indefinido e engolindo sílabas, este ano aprendeste a ser uma boa pessoa.
Eu?! Eu aprendi a ser uma boa pessoa?!
Escuta, Isabela, Deus está contente contigo, porque tens guardado o teu coração; porque o tens mantido puro no meio de toda a vileza...
Ri-me. Estás a brincar. Deus baixou o nível dos marcadores de pureza, não foi?!
… e porque Deus está contente contigo, mandou-me oferecer-te um filho.
Como? Por concepção divina, como a Maria? És o anjo da Anunciação? Vais levantar o braço e da tua mão sairá um raio de luz que me atravessará, como um vento, e…
Sim, como a Maria, a Senhora. Vou plantar essa semente no teu coração. O teu filho será um pardal dos telhados, por ordem do Senhor, e quando ele nascer cuidarás dele com todo o teu amor, como se fosse um menino humano saído da tua barriga, muito são. Nascerá na Primavera, e quando o tiveres criado, devolvê-lo-ás à liberdade, ao céu dos pássaros, porque, sendo teu filho, não é teu.
Logo senti o meu coração cheio. Gerava um passarinho minúsculo e frágil na aurícula esquerda. Andei assim umas semanas, com o coração mais lento, batendo devagarinho para não incomodar o passarinho. Nunca dormia voltada para o lado esquerdo para não apertar o menino. Nos princípios de Março, mais ou menos por esta altura, senti um aperto cardíaco. Uma dor aguda, muito aguda. Encolhi-me. Não conseguia respirar, que aflição, abri a boca, abri, abri, que agoniada, que mal disposta, que confusão de sensações, e o pardalinho veio-me à garganta, cheio de sangue.
Puxei-o para fora com o polegar e o indicador, e ali estava o mais belo filho deste mundo. A isto chamei eu, e de direito, parir pela boca do corpo. Um filho perfeitinho como qualquer mãe deseja. O biquinho. As patinhas. As asinhas molhadas. Os olhinhos fechados. Sacudindo-se de vida. Que felicidade, o meu filho!
Embrulhei o menino num paninho de algodão, limpei-o com muito cuidado e aconcheguei-o numa caixinha de sapatos forrada a trapos, muito quentinha.
O menino foi crescendo no meu amor e com a comidinha que lhe dava. Não lhe atribuí um nome, pois sabia que, sendo meu, não me pertencia, mas ao mundo. Era só o passarinho, o meu passarinho, o meu inho, o meu amor.
Em Maio, querendo ele voar, como percebi, segurei-o nas mãos, levei-o até à janela grande da sala, abri-a toda e disse-lhe, vai, meu querido, és livre, mas promete-me que voltas ao amor da mãe a cada solstício de Verão. E ele voou para Oriente, não sei para onde no Oriente, até que deixei de o alcançar.
Fechei a janela, voltei para dentro, e Deus, penso eu, que estaria presente nesse momento, como em todos, presenteou-me com uma segunda momentânea visão do anjo azul. Por segundos pude visualizar Mark Ruffalo sorrindo-me como os anjos sorriem; depois piscou-me o olho e desvaneceu-se. Senti os lábios mornos e húmidos e concluí que gosto que me apareçam anjos.
Agora, que a Primavera está por aí, aguardo a todo o momento o regresso do meu filho pródigo.
Hoje, esteve um lindo dia, por isso deixei as janelas abertas, esperando que o meu pardalinho entre por elas, muito em breve, e me pouse no ombro, e me pie, voltei, mãe, voltei.


Mark Ruffalo, o anjo da Anunciação

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