Bucareste, Suceava, pela E85 - parte 1


Primeiro fecho os olhos. Vejo melhor com os olhos fechados. No meu cérebro existe uma sala privada de cinema; se correr as cortinas e apagar as luzes, consigo assistir a sessões gratuitas. O filme chama-se “O que já passou”, produzido e realizado por mim. O de hoje começa com um Citroen ZX percorrendo os principais eixos rodoviários de Bucareste, extremamente movimentados, que permitem alcançar a estrada nacional 85, em direcção ao Norte. Dirigimo-nos à Bucovina. Neste passo do meu filme, ruas com árvores, zonas densamente povoadas e urbanizadas, atravessadas por um trânsito indescritivelmente perigoso. Penso que se aprendi a conduzir no caos de Lisboa, se conduzo no caos de Lisboa, conduzirei em qualquer parte do mundo. Não é bem assim; Lisboa é um caos que domino, que entendo, partilho e para o qual contribuo. Um caos resolvido. O caos do tráfego rodoviário em Bucareste é desesperado, porque eu estou desesperada. Não sei para onde vou. As ruas têm inúmeras faixas, como um monstro de cinco cabeças, todas eles lançando fogo pela boca. São percorridas por intermináveis cordas de carros cujos tubos de escape rebentam em fumo e ruído, conduzidos como carrinhos de rolamentos loucos pela encosta abaixo, rasando-se.
Sossego após atravessar a zona industrial em direcção ao Norte. O que vejo agora? Campo cultivado ou ceifado. Extensos campos. Árvores ladeando a estrada. É o por-do-sol com laivos laranja. A minha hora preferida, que chega para sossego de todos os espíritos, os bons e os maus. Há uma lentidão, não sentem?!, uma preguiça. Entendemos as pernas. Respiramos fundo. Finalmente fora de Bucareste. Agora, sim, é a Roménia, o que eu quero que a Roménia seja, uma terra pacífica e bela. Ah, que calma! Vai correr tudo bem. Este é o início de uma viagem maravilhosa.
Escurece lentamente, sobre os campos ceifados, castanhos-claros, e na escalada da noite vão surgindo os fogos acesos de queimadas que empastam o ar com fumo invisível e transformam a escuridão num cenário iluminado sem tempo nem espaço. É a noite e o fogo, que são iguais há milhares de anos, em todos os lugares do planeta. Seguimos em silêncio. S. vai copilotando, atenta a placas com indicações de direcção e quilometragem. A noite avança e estamos cansadas. Torna-se claro que foi um erro sair de Bucareste tão tarde para atravessar toda a Roménia, de Sul para Norte. Cerca de 500 quilómetros não se fazem em 5 horas, já devia saber. A que horas fecha a pousada? Aqui no guia não diz. Não deve fechar. Se fechar, toca-se à campainha e alguém vem abrir. Sim, mesmo chateado, alguém virá abrir.
Vamos andando. Esta noite chegaremos muito tarde, mas dormiremos num local fresco; uma pousada perto de Suceava. Acabou-se o inferno de Bucareste. Em desespero de cansaço, paramos em Adjud para beber um café que afinal vazamos no alcatrão.
São onze e tal da noite da noite. Há tabernas abertas de onde sai ruído de vozes. Entrar sozinha não será muito aconselhável, mas o que tem de ser feito, faz-se. Entro no primeiro café. Os homens param de falar, por segundos, enquanto entro e me dirijo ao balcão. Há mesas e cadeiras de um lado e do outro, como num bar de um western. Não tenho pistola, apenas a minha dignidade. Recomeçam a conversa, mais baixo. Riem. Não sei o que dizem. Pronunciam algumas palavras em inglês, good, beautiful; dizem América, mas isso não é inglês, é romeno, é português. Peço café e água ao balconista. Pago. Saio rapidamente, tentando não entornar as chávenas de cartão rasas de líquido. Chego vitoriosa. S. bebe o primeiro golo e olha para mim. Isto é café?! Tem um sabor esquisito. Tem?! Nunca gostei de café, não sei dizer se é bom ou mau. Bebo, seja como for. S. tem razão. O café está gasoso. O café tem Coca-Cola. É ela que o diz. Tem Coca-Cola, tem. Até eu percebo. S. pergunta-me como aconteceu aquilo. Não sei. Digo não sei, mas penso que vi o homem entornar o conteúdo de uma garrafa sobre os copos. Seria água fria para arrefecê-lo. Não o impedi, porque já estava feito. Mas se quisesse reclamar não teria vocabulário que mo permitisse. E ali não se reclamava. Era a Roménia, e as pessoas tinham outros hábitos. Despejar água no café deveria ser normal. Não disse nada disto a S., aborrecida com os hábitos romenos e a inutilidade dos meus préstimos. Coca-Cola no café! Gente doida! Obcecada por tudo o que é americano.
Continuamos caminho. Racaciuni. Terras cultivadas. Noite escura. Cleja. Veículos pesados circulando devagar. Nicolae Balcescu. Cansaço. Bacau. Noite, noite escura. Bogdan-Voda. Um animal atravessa a estrada. Campo. Roman. Estrada. Traian. Árvores. Vinha. Geraiesti. Campo, camiões, atenção. Cristesti. Noite escura. Draguseni. Noite mais escura. Vadu Moldovei. Noite. escuríssima Falticeni. Oh... quase. Suceava. E agora, para que lado é a pousada?

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