Encontro-te todas as noites

A esperança ajuda a viver. Já tinha passado por essa fase. Mas agora era tarde: perdera a esperança. Não vivia triste nem eufórico: vivia. Não pretendia matar-se, bem pelo contrário. Desejava viver o que lhe restava o mais confortável e amavelmente possível. Talvez ainda suportasse bem um par de responsabilidades, mas depois viesse a reforma, esse tempo que guardamos para nos restabelecermos de anos de cansaços e contrariedades. Que importava a velhice? Que diferença substancial poderia existir entre os 25 e os 52 anos?! Pele?! A pele não tem assim tanta importância. Arrependia-se de ainda sonhar. Talvez arrependimento não fosse a palavra... como evitar sonhar os sonhos que o visitavam tão amiúde? Que responsabilidade tinha ele?
Encontrava-a de novo. Ela ia com o marido e os filhos, ainda bastante jovem, indiferente, cumprimentando-o de longe, como se se conhecessem mal, ou fazendo de conta que não o conhecia. E esse era exactamente o dia em que ele saíra de casa com a roupa velha, sem se barbear, o cabelo mal penteado. Nos sonhos era assim: ela, no seu melhor; ele, um indigente. Como poderia ela respeitá-lo ou admitir que tinham tido um caso tão bonito quanto trágico?
Queria esconder-se. Escondia-se. Nos últimos assentos do autocarro, atrás de um grupo de pessoas, mudando de passeio. Como pudesse. Mas ela via-o, por mais que se escondesse. Não havia forma de fugir a esse olhar culposo que lhe dizia "meu Deus, como estás mal, como envelheceste! Devias deixar de fumar, fazer jogging, usar um creme hidratante." Nos últimos 10 anos as mulheres tinham passado a achar que um homem devia usar creme hidratante e máscara para amaciar o cabelo. E isso era o menos. Dava tudo para estar no seu esplendor de homem nesses encontros em que a via, em sonhos, mas tão reais. Dava tudo para merecer dela um olhar aprovador, um "muito bem, estás óptimo" adivinhado, apenas. Ela não podia imaginar o que tinha sido viver debaixo da sua pele nos últimos 30 anos. Não sabia o que era uma ausência. Ele poderia enumerar meia dúzia de sinónimos em cinco segundos.
E se ela tivesse sentido o mesmo? Se tivesse, em silêncio, sem um sinal, carregado a mesma falta até se cansar? Não era impossível. Se afinal aquela mulher tivesse razão em não suportar vê-lo, olhá-lo, imaginar que existia e a provocava? Era uma ideia insuportável que nunca lhe tinha ocorrido e que preferia afastar da mente. Ela era insensível. Ponto final. Desprezava-o. Parágrafo. Nisto conseguia acreditar.
De resto eram só sonhos. Nenhum daqueles encontros fora por um minuto real, embora acontecessem todas as noites.

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