O que fiz ao Corpo do Senhor


Para comemorar a visita do Papa Bento XVI inicio hoje uma curta série de textos dedicados à minha relação íntima com a religião católica.

Fiz a primeira comunhão em Moçambique, na igreja da Matola nova. Não sei se havia Igreja na Matola velha; é possível. O padre era um senhor de batina branca, com uma grande trunfa morena, magro, de estatura média-alta, com óculos, pelos seus 40 e picos. Um bocado comunista demais para o gosto dos meus pais, segundo pude escutar. E porquê? Bem, porque constava que o padre protegia muito os negros, defendendo que tínhamos os mesmos direitos. Durante muito tempo achei que os comunistas eram pessoas que gostavam dos pretos.

No dia da primeira comunhão - a foto até aparece no Caderno - eu, e uma boa centena de meninas, 90% das quais, negras, fomos receber o Corpo de Cristo pela primeira vez, devidamente confessadas e vestidas a rigor. Eu, de branco, com meias de lã e sapatos de verniz, o que era habitual. A única diferença consistia no facto de nesse dia o vestido ser de bordado inglês. Se calhar não sabem o que é bordado inglês, mas explico com gosto: é um tecido de algodão todo esburacado, e cada buraquinho deve ser visto como uma pétala, nuns casos, ou como uma flor, noutros. Era fresco. Cá por mim, podiam ter-me vestido sempre de bordado inglês. Ter-me-iam poupado grandes estopadas de calor. Mas o bordado inglês era fino e caríssimo, só para ocasiões solenes como casamentos, baptizados e comunhões.

Naturalmente, nunca tinha tomado a hóstia. Desconhecia a sua consistência e sabor. Queria experimentar, e devo dizer que era a grande motivação para andar na catequese. Não é que não quisesse aprender sobre a vida de Cristo. Queria. Mas queria muito mais provar a hóstia. Havia todo aquele misticismo sobre ser o Corpo do Senhor, não se poder trincar, apenas deixar que se desfizesse lentamente no interior cavidade oral, um momento muito sagrado, pungente mesmo.

No dia da primeira-comunhão, chegada a minha vez de comungar, abri a boca, mas insuficientemente; o senhor padre inseriu-me a hóstia na ponta da língua e, quando a recolhi, percebi que me tinha ficado colada ao céu da boca e contra os dentes do maxilar superior, metade fora. Apesar das tentativas, não conseguia descolá-la nem escondê-la dentro da boca, como as outras, de maneira que, envergonhada, enquando regressava ao meu lugar, resolvi trincá-la para a fazer desaparecer. E estava demasiado preocupada com a dessacralização para conseguir pensar no sabor.
A minha primeira comunhão não foi, assim, o momento em que recebi o Corpo do Senhor, mas aquele em que o trinquei. E estou em crer que este insucesso marcou para sempre a minha relação com o catolicismo.

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