Queria ser outra

A Roménia é claramente o Oriente a Norte. Sente-se um fatalismo alegre; uma brusca necessidade de sobrevivência intersecciona certo desejo de inconsciência. A música dos ciganos ouvida ao longe, pelas estradas, é tão estupidamente alegre que me apetece chorar. O que canta esta gente? O que dança? O que festeja?
No Oriente, há cacimbo pela noite. Os dias são quentes e húmidos. A atmosfera pesa lentamente, e eu sinto-me tão só e perdida, que me ocorrem pensamentos suicidas. Em alternativa, dormir.
Quando chegámos ao albergue, perto de Sucevita, onde dormiríamos, segundo os nossos irrealistas planos de viagem, era tarde demais. Duas da manhã. Estava fechado e não havia quem nos recebesse. Na minha memória, uma luz fraca pendia sobre a porta onde S. bateu. É provável que não houvesse luz alguma para além do luar. Estacionámos junto ao edifício e concluímos que a solução seria dormir no Citroen, rodeadas pela floresta.
Não durmo em qualquer lugar. Não durmo em pé nem sentada nem inclinada nem nos aviões nem nos comboios nem no cinema. Durmo bem no chão, se puder esticar-me e pousar a cabeça numa superfície macia, como um casaco. Mas não durmo no chão de um lugar no qual me sinta insegura.
Dentro do carro, escutando o piar das aves nocturnas, o ruído dos insectos e bichos que vagueavam ordenadamente pela escuridão, o rumor das águas de um ribeiro próximo, a brisa tocando os ramos das árvores do bosque, sentindo a humidade da noite, podia dizer-me relativamente segura. Tinha-me sido atribuído o melhor lugar do automóvel, o banco de trás, mas o problema consistia em saber onde colocar as pernas. Sou grande demais. Sobra sempre uma parte de mim que não sei onde arrumar. Nunca caibo. O que fazer de mim, e comigo?
Passámos uma noite em grande desconforto. S. dormiu. Ouvia-lhe a respiração pesada, à frente, e pensava que queria ser igual. Queria adormecer sentada no banco do pendura com o encosto ligeiramente inclinado. Queria ser uma pessoa fácil, diferente, outra. Queria não ter medo, não duvidar, não prever.
Deitei-me de lado e entreguei-me ao meu ofício nocturno mais frequente: pensar. De manhã haveríamos de comer qualquer coisa, o que houvesse, tomar um banho quente, sacudir a cabeça e depois partiríamos em direcção aos mosteiros da Bucovina. Ia correr tudo bem. Era só preciso sobreviver ao frio dessa noite.

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