Barata tonta

A barata e eu somos infernalmente livres porque a nossa matéria viva é maior que nós, somos infernalmente livres porque minha própria vida é tão pouco cabível dentro de meu corpo que não consigo usá-la.

in A Paixão Segundo GH, Clarice Lispector

As minhas cadelas não gostam de brincar com as minhas baratas. Deixam-se ficar estendidas pelo chão da sala, seguindo com o olhar o bicho pré-histórico que corre de um lado para o outro "feito barata tonta". Não compreendem que grite e pragueje. Eu sou um incómodo para as minhas cadelas; as baratas, não. Dificilmente posso compreender esta lógica. Ontem, disse-lhes, melhor seria que vocês fossem gatos para brincarem com elas até as matarem. E sugeri à Micas que me recordo perfeitamente do dia em que abocanhou um pardalinho cujo coração parou de bater na minha mão. E agora, o que fazia ela para me salvar da barata intrusa?! Sim, cobrei-lhes a sua natureza animal.
Talvez eu devesse tolerar baratas. São criaturas de Deus, como as lagartixas, que não despertam em mim sentimentos assassinos. Por outro lado, em Moçambique, desde que nasci, vivi sempre em casas com baratas debaixo do lava-louças, no motor do frigorífico, atrás do fogão, na arrecadação Quando vim para Portugal respirei de alívio. A população era menor. Tenho tido muita sorte. Faço sempre o esforçozinho sobrevivente de encontrar algo de bom para o que nem sempre resulta bem. Mas as baratas que em Moçambique voavam de parede para parede, e nos subiam pelas pernas durante a noite, não se tornaram realidade ordinária. Tenho medo e nojo dessas perfeitas criaturas de Deus. Deus também erra.

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