O mal gratuito

Na minha rua, sobre os telhados dos prédios, arrulhando, fazendo ninhos, havia pombinhos. Brancos, cinzentos, manchados, uma boa dúzia deles. Ultimamente, ao final da tarde, escutava o chiar dos borrachinhos, sobre o meu tecto, quando sentiam os pais chegar com o papo cheio para eles. Ouvia-os e ficava satisfeita, porque a ordem da vida cumpria-se tão perto de mim, e enchia-me da paz de quando tudo está certo.
Lá em baixo, à hora do almoço, o velhote perneta que chama sempre a Morena para lhe fazer festas, atirava aos pombos pedacinhos de pão sobrante, que esfarelava nas mãos. Muitas vezes, os pombos partilhavam a refeição com a Morena. Davam-se bem.
No prédio azul, há uma loja de frescos que tem à porta uma tigela de água para os pombinhos. Ontem, junto à água, apenas um, doente, de bico aberto, aflito. O velhote perneta tinha espalhado o pão de cada dia pelo chão, mas não tinha clientes. Perguntei-lhe, "então, os pombinhos?". "Estão enjoados da refeição", respondeu-me, sorrindo. Não quis dizer-lhe a verdade. Não quis dizer-lhe que o caçador que mora no prédio de trás envenenou os pombos. Que poucos restaram, e esses estão doentes. E que os borrachinhos por cima da minha casa deixaram de chiar. A consciência do mal gratuito não beneficia ninguém.

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